Resenhas

Lovecraft Country: adaptação ou reparação histórica?

Série de TV usa horror lovecraftiano a seu favor e com extrema destreza.

17-11-2020Por Lara Batista – Aluna de Letras Inglêslarabatista137@gmail.com Professora: Érica Fernandes Alves

A série Lovecraft Country ou Território Lovecraft (2020), baseada no livro homônimo (2016) de Matt Ruff, passa-se na década de 1950 e resgata elementos da mitologia do autor H.P. Lovecraft para discutir algo que o próprio autor praticava e que ainda nos assombra nos dias de hoje: o racismo. Seguimos o protagonista, Atticus Freeman (Jonathan Majors), sua amiga, Letitia Lewis (Jurnee Smollett), e seu tio George Freeman (Courtney B. Vance) em uma viagem pela América extremamente racista da época, em busca de seu pai desaparecido e, assim é travada uma batalha contra criaturas aterrorizantes, sendo a maior delas a supremacia branca. Em entrevista concedida à VEJA, a atriz que interpreta a personagem Letitia, Jurnee Smollett, explica:

“Acho que essa é a tragédia de nossa nação. O racismo é um espírito demoníaco. E ainda temos que nos curar realmente disso. Ainda temos que desmantelar verdadeiramente esse racismo sistêmico. E então aqui nos encontramos fazendo uma história que é muito ancestral, basicamente sobre nossos heróis derrubando a supremacia branca. O branco aqui não tem só o poder, tem a magia também. Mas somos mágicos. Portanto, nossos heróis estão envolvidos em uma guerra espiritual.” (1)

Basta ler pequenos trechos das obras de Howard Phillips Lovecraft para identificarmos o seu posicionamento. Em seu poema Sobre a Criação dos Negros, que é citado no episódio piloto da série, o autor afirma que as pessoas não brancas, chamadas de bestas, “foram feitas para tarefas menores e estavam muito distantes da raça humana”:


ON THE CREATION OF NIGGERS

When, long ago, the gods created Earth

In Jove’s fair image Man was shaped at birth.

The beasts for lesser parts were next designed;

Yet were they too remote from humankind.

To fill the gap, and join the rest to Man,

Th’Olympian host conceiv’d a clever plan.

A beast they wrought, in semi-human figure,

Filled it with vice, and called the thing a Nigger.


Em vários de seus contos, como em Medusa’s Coil, Lovecraft inclui diversos estereótipos e usa a negritude como algo a se temer. Além disso, em cartas pessoais documentadas, Lovecraft demonstra compactuar com as iniciativas de Hitler. A série produzida pela HBO usa magia, bruxas, monstros, fantasmas, cultos místicos e outros elementos sobrenaturais como metáfora para a relação de violência entre negros e brancos (o que infelizmente se perpetua até hoje). Eu diria a H.P. que, com a exibição do seriado, o feitiço se virou contra o feiticeiro hahaha!

Além disso, a série nos dá uma aula de história, mostrando-nos o funcionamento das leis de segregação, as chamadas leis Jim Crow, que começaram a surgir após o fim da escravidão nos EUA (1863) e só foram erradicadas em 1964. Também são retratadas as sundown towns, cidades e/ou vilarejos que não permitiam a estadia de negros após o pôr do sol, bem como o uso do Livro Verde do Motorista Negro, um guia com indicações dos poucos locais que aceitavam a parada de negros durante viagens.

De acordo com o site norte americano de críticas de cinema e televisão, Rotten Tomatoes, Lovecraft Country foi aclamada pela crítica especializada, conquistando 90% de aprovação, mas recebeu apenas 66% de aprovação do público. Essa diferença é ainda mais gritante quando falamos da premiada Watchmen (2019), série baseada nos quadrinhos mundialmente famosos de Alan Moore, produzida pela mesma emissora e que também trata de questões raciais, mas desta vez utilizando super-heróis, recebendo 96% de aprovação da crítica e apenas 55% do público. Penso que as séries cumpriram com seu propósito de fazer as pessoas refletirem e talvez por isso tenham incomodado tanto.

Hollywood precisa de mais produções de ficção-científica que transmitam mensagens fortes e importantes como essas que nos dão um soco no estômago, um choque de realidade e que atinjam um novo público.

A primeira temporada de ambas as séries citadas estão disponíveis na HBO Go.


(1) MORISAWA, Mariane. ‘O racismo é um espírito demoníaco’, diz atriz de ‘Lovecraft Country’. VEJA, 24, agosto de 2020. Disponível em https://veja.abril.com.br/cultura/o-racismo-e-um-espirito-demoniaco-diz-atriz-de-lovecraft-country/. Acesso em: 09 novembro de 2020.

Imagem da capa: HBO/Divulgação.