E se analisássemos a música Assim sem você, lançada em 2004 por Adriana Calcanhoto, a partir da perspectiva de Perini (2006; 2010) sobre papéis temáticos, força ilocucionária e tipos de orações, a fim de obter uma análise sobre a sua construção semântica? Para explicar a relação entre a forma e o significado das expressões linguísticas em determinados momentos da música, será explorado o papel temático dos argumentos dos verbos e, em outros momentos, os conceitos de tipo de oração e força ilocucionária.
De acordo com Perini, o conceito de papel temático corresponde à relação semântica que existe entre o verbo e os outros sintagmas da oração, sendo assim, um mesmo sintagma pode ter várias funções semânticas em decorrência de sua posição na frase (2010. p. 147). O “problema” desse conceito recairia na incerteza que se tem quanto a estas classificações, uma vez que existe uma enorme quantidade de funções possíveis na interface entre a língua e o conhecimento de mundo do falante. Por esse motivo, por vezes, essa classificação é incerta, mesmo para os próprios gramáticos (2010. p. 151). Entretanto, Perini afirma que não seria possível e nem mesmo necessário criar uma nova classificação para cada relação cognitiva, visto que elas são subjetivas e não tem limites possíveis. A representação feita pelos papéis temáticos já são parte de um processo de esquematização que tem por objetivo codificar relações cognitivas semelhantes, mesmo que não idênticas (2010. p. 153).
Dentro da abordagem sobre os tipos de sentença, Perini (2006) analisa elementos formais dentro das orações, visando classificá-las, de maneira fechada, quanto ao tipo de estrutura manifestada gramaticalmente. A partir disso, estabelece cinco diferentes tipos de oração: as imperativas, caracterizadas pela presença do verbo no imperativo; interrogativas abertas, marcadas pela presença de um elemento interrogativo (o que, quem, quando, onde etc.), do ponto de interrogação, além de ser pronunciada com entonação descendente; interrogativas fechadas, marcadas somente pelo ponto de interrogação e pronunciadas com entonação ascendente; exclamativas, cuja marca principal é o contorno entonacional particular que recebem e, na escrita, pela presença do ponto de exclamação; optativas, que possuem verbo no subjuntivo na oração principal e declarativas, que são definidas “negativamente”, por não apresentam os traços distintivos das outras classificações.
Já em sua abordagem sobre a força ilocucionária, ele explica que essa classificação permite diferenciar o “tom” de uma sentença. Por estar muito relacionada à interpretação do leitor com relação ao que foi dito, levando em conta o contexto, a entonação e as condições em que se manifesta, a classificação de força ilocucionária é extremamente aberta e subjetiva, não sendo possível estabelecer-lhe tipologias fechadas. No entanto, Perini elenca as que considera mais recorrentes na língua: as de declaração, pergunta, exclamação, ordem, pedido, promessa e expressão de desejo (2006, p. 62). O gramático ressalta, ainda, que a classificação relacionada à força ilocucionária não é correspondente à do tipo de oração, embora existam certas estruturas sentenciais especializadas em veicular determinado tipo de força ilocucionária. Desse modo, apesar de ser menos comum, uma sentença pode ser do tipo interrogativa e não necessariamente apresentar uma força ilocucionária de pergunta.
Partimos, portanto, para a análise da letra da canção, transcrita abaixo:
Assim sem você - Adriana Calcanhoto (2004)
Avião sem asa
Fogueira sem brasa
Sou eu assim sem você
Futebol sem bola
Piu-piu sem Frajola
Sou eu assim sem você
Por que é que tem que ser assim?
Se o meu desejo não tem fim
Eu te quero a todo instante
Nem mil auto-falantes
Vão poder falar por mim
Amor sem beijinho
Buchecha sem Claudinho
Sou eu assim sem você
Circo sem palhaço
Namoro sem amasso
Sou eu assim sem você
'To louco pra te ver chegar
'To louco pra te ter nas mãos
Deitar no teu abraço
Retomar o pedaço
Que falta no meu coração
Eu não existo longe de você
E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio 'tá de mal comigo
Eu não existo longe de você
E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio 'tá de mal comigo
Por quê?
Por quê?
Neném sem chupeta
Romeu sem Julieta
Sou eu assim sem você
Carro sem estrada
Queijo sem goiabada
Sou eu assim sem você
Por que é que tem que ser assim?
Se o meu desejo não tem fim
Eu te quero a todo instante
Nem mil auto-falantes
Vão poder falar por mim
Eu não existo longe de você
E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio 'tá de mal comigo
Eu não existo longe de você
E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio 'tá de mal comigo
Por que, neném?
Por quê?
Eu não existo longe de você
E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio 'tá de mal comigo
Eu não existo longe de você
E a solidão é o meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio 'tá de mal comigo
Por quê?
Por quê?
Verificamos logo que, na primeira estrofe, o eu-lírico procura explicar, por meio de metáforas, o sentimento de inexistência e/ou incompletude por estar longe da pessoa amada: “avião sem asa/ fogueira sem brasa / sou eu assim sem você” e “futebol sem bola/ piu-piu sem frajola/ sou eu assim sem você”. Para isso, constrói duas orações nas quais os argumentos selecionados pelo verbo “ser” - “avião sem asa, fogueira sem brasa” e “eu assim sem você”; - têm papel temático de Ⲁref. Perini (2010, p.150) explica que essa classificação se refere a cada um dos termos de uma "igualdade afirmada”, ou seja, os sintagmas cujos papéis temáticos sejam correspondentes ao de Ⲁref deterão uma relação semântica de igualdade dentro da sentença. Para a composição da música, essa organização semântica é estratégica, tendo em vista que reforça a “igualdade afirmada” entre o sentimento de incompletude e o eu-lírico sem seu parceiro. Essa estrutura se repete tanto na terceira quanto na oitava estrofe, com o uso de diferentes metáforas que transpassam o mesmo sentido.
No restante da canção, percebemos que a intenção do eu-lírico é a de expressar o sentimento de forma mais direta, e não por meio de metáforas. Sendo assim, verifica-se que a segunda estrofe começa com a seguinte oração: “Por que é que tem que ser assim?/ Se o meu desejo não tem fim”. Nota-se nos versos acima a utilização de uma sentença interrogativa aberta, marcada pela pontuação, para expressar uma força ilocucionária de lamentação, uma vez que demonstra a infelicidade do eu-lírico em relação à ausência de seu parceiro. A seguir, há duas sentenças do tipo declarativas: “Eu te quero a todo instante” e “Nem mil auto falantes/ Vão poder falar por mim”, cuja força ilocucionária representa um tipo de frustração - o eu-lírico se frustra ao notar que é incapaz de expressar a intensidade de seu querer.
Na quarta estrofe, são pronunciadas as seguintes orações, de tipo declarativa: “'To louco pra te ver chegar/ 'To louco pra te ter nas mãos/ Deitar no teu abraço/ Retomar o pedaço/ Que falta no meu coração”. Neste caso, observa-se, principalmente por meio do indicativo “‘To louco pra […]”, que o eu-lírico pretende expressar a vontade de ter seu coração preenchido por meio da presença de seu amor em seus braços. Portanto, identifica-se na sentença força ilocucionária de desejo.
Nas duas estrofes seguintes, o eu-lírico prossegue a expressar a sua melancolia diante da distância e a ansiedade em rever o objeto de seu desejo, com as seguintes orações: “Eu não existo longe de você/ E a solidão é o meu pior castigo/ Eu conto as horas pra poder te ver/ Mas o relógio 'tá de mal comigo”. Nas duas primeiras sentenças, de tipo declarativas, verifica-se novamente uma força ilocucionária de lamentação, visto que é expressa a dificuldade em existir de forma solitária. Já nas duas últimas, é possível identificar um sentimento de angústia por parte do eu-lírico ao contar as horas para ver seu amado, que o diferencia, em certa instância, da lamentação pura. Portanto, localiza-se, nestes últimos, uma força ilocucionária de inquietação.
O sentimento de lamentação é evidenciado continuamente na música, aparecendo mais uma vez e sendo derradeiro nos dois últimos versos: “Por que?/ Por que?”.
Tendo em vista a análise realizada, é possível concluir que, a partir da teoria de Perini, podemos compreender de forma mais aprofundada o sentido da letra da música e suas estruturas. Relacionar a forma com o sentido é um processo de extrema complexidade, pois envolve questões subjetivas que englobam o conhecimento de mundo individual de cada falante/ leitor, isto é, são ilimitadas. No entanto, ao identificar a linha que determina forças semelhantes, pode-se obter algo que seja de sentido universal para todos os leitores.
Referências
CALCANHOTO. A. Assim sem você. BMB: 2004.
PERINI, M. A Oração Simples. Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Ática, 2006. Cap. 3. pp. 61 – 67.
PERINI, M. A. Papéis Temáticos. A Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola, 2010. Cap. 12.