Linguística

Ele é do Sul, mas de onde?

As diferenças entre três sotaques sulistas como instrumento de humor.

03-12-2020Por Priscila Viana Zaponi – Aluna de Letras InglêsOrientador: Edson Carlos Romualdo

Todo brasileiro sabe que em nosso extenso país existem muitas e muitas formas de falar. Não é difícil, para a maioria dos falantes, identificar se um sotaque é mais característico do Norte ou do Sul do Brasil; porém, mesmo nestas regiões, existem grandes diferenças entre a fala dos habitantes dos variados estados e cidades.

Pode parecer que não, mas nós gostamos muito de prestar atenção na fala e em como ela é realizada pelos diversos falantes. As diferenças na fala ocorrem em função de vários fatores, entre eles, o tempo (variação histórica), a classe social (variação social), o nível de formalidade da situação de interação (variação estilística) e a região (variação geográfica). Em geral, esta última é muito percebida pelos brasileiros, tendo em vista a dimensão do território nacional e as mudanças perceptíveis de região para região.

Os sotaques são muito utilizados em programas e quadros humorísticos, frequentemente para caricaturar os falantes de determinada região. Um exemplo que quero mostrar é uma série de vídeos criada pelo comediante paranaense Diogo Portugal, chamada “Os três do Sul”. Os vídeos contam com a encenação de outros três comediantes principais (um gaúcho, um catarinense e um paranaense) que conversam via áudio em um grupo do aplicativo de mensagens WhatsApp. Os vídeos tratam normalmente de temas do cotidiano, trazendo uma forma satírica de olhar para os assuntos abordados, porém cada um dos comediantes produz os áudios usando formas linguísticas que são muito características do falar popular de sua região.

Para compreender como os comediantes produzem o humor a partir de variações linguísticas, vamos tomar como exemplo o vídeo “Os três do Sul - Alta do arroz”, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OVMYHYpKUPY. Nesse vídeo, os humoristas se valem dos altos preços do arroz comercializados em todo o país, desde o mês de setembro de 2020, simulando uma conversa entre amigos sobre o tema.

Na fala de Gustavo Furlim (o gaúcho), podemos identificar vários elementos caracterizadores da cultura sul-riograndense. A mais típica, e mais conhecida por todos os brasileiros, é a pronúncia mais “cantada” e o uso de palavras como “bah”, “tri”, “guri” (no caso do vídeo, “gurizes”) e o uso do pronome “tu”, porém com a conjugação do verbo feita como se a pessoa fosse “você”, como em “agora tu veio”. Também há o uso de outras expressões que são menos conhecidas por pessoas que têm pouco contato com a cultura “gaudere” atual e com o português falado na região de Porto Alegre. Como exemplo, temos a expressão “oh meu”, que é repetida várias vezes pelo gaúcho, o que pode representar um uso típico da região. Também é possível encontrar expressões que não se repetem em outros territórios do Brasil, como “larguei pras cobra”, “bagual”, “fiquei de horror” ou “chinelar pras banda”. Outro elemento muito marcante da cultura gaúcha abordada no áudio é o churrasco que, junto com o chimarrão, formam a imagem mais “clichê” do gaúcho no imaginário brasileiro.

A fala do representante catarinense é feita por Irineu Nicoletti, residente de Itajaí, cidade vizinha da superconhecida e turística Balneário Camboriú. Você pode então pensar: “Mas eu já fui várias vezes para Balneário Camboriú passar a virada do ano e nunca vi ninguém falando como ele”. O fato é que Balneário Camboriú é uma cidade muito diferente de suas vizinhas Itajaí, Camboriú e Itapema. Por ser uma cidade que recebe pessoas de todo o país, o sotaque de Balneário Camboriú é muito diferente do sotaque das outras cidades. O que Nicoletti representa é a fala dos catarinenses realmente nativos da região do litoral, sendo que as formas linguísticas utilizadas pelo humorista podem ser observadas até no litoral sul do estado. Essa variedade é marcada pelo uso de uma realização chiante no “s” em posição de final de sílaba, por isso o comediante produz um som que se parece com “x” ou, como ele mesmo representa, “sh”. Nicoletti criou um bordão usando uma fala típica da região, o “mash baita”, mostrando que ele tem noção da diferença fonética entre a fala dele e a da maioria dos brasileiros. Uma característica da fala que o humorista reproduz é o fato de que, por vezes, os catarinenses produzem o som de “di” e “ti” como africada, tendo um som de “dji” ou “tchi” (mais comum na maior parte do país), como em “ponto turístico” e, por vezes, a pronúncia é sem essa fricção, o como em “mi diz”. Outros elementos característicos do falar “manezinho” (nome dado ao sotaque do litoral catarinense) são as expressões “tais é doido”, “uish” (este amplamente difundido e utilizado), “quiridu” e “mi diz” (típicos e muito usados na região).

Ao nos voltarmos para a fala do paranaense, o primeiro ponto a se considerar é que se trata de um falante da região de Curitiba. Rafael Aragão faz algumas produções fonéticas típicas do falar do curitibano. A mais conhecida delas e, talvez, a que é mais lembrada quando pensamos na fala dos curitibanos é o uso do “d” e “t” sem fricção, que junto com a produção da vogal “e” átona final, produz o tão conhecido “leite quente” produzido na fala dos habitantes de Curitiba. Logo no começo da fala de Aragão, podemos encontrar este traço na frase “vâmo te de adiá”, mas este é apenas um exemplo desta característica fonética curitibana. Também podemos encontrar várias palavras e expressões que não são comuns em outras regiões e, consequentemente, em outros sotaques. Algumas palavras usadas pelo humorista no áudio são “piá” (para se referir a meninos ou rapazes), “bardiá”, “bixão”, desacorsuei” e “piazada”.

Ok, entendi que cada estado/região tem um jeito próprio de falar, mas o que isso tem a ver com o vídeo? Bom, é exatamente através da exploração das diferenças que o humor é produzido. Os comediantes utilizam cada particularidade do sotaque característico de sua região e o contraste entre essas diferenças cria o efeito cômico do vídeo. Como os temas são cotidianos, é também muito interessante visualizar as diferentes percepções do mesmo assunto. É lógico que, na busca pelo riso, os humoristas exageram um pouco nas marcações linguísticas, porém, para aqueles que conhecem pessoas naturais das cidades representadas pelos atores, a impressão é de que não há quase nenhum exagero, mas sim uma representação bastante fiel (e até mesmo uma forma de apreciação) da fala de sujeitos típicos dessas regiões.