Resenhas

A Polêmica de Ray Bradbury

Há várias maneiras de se queimar um livro..

17-12-2020Por Lara Batista – Aluna de Letras Inglêslarabatista137@gmail.com Professora: Érica Fernandes Alves

O autor Ray Bradbury nasceu em 1920 na cidade de Waukegan, Illinois e faleceu no ano de 2012. Começou a escrever aos 11 anos e sua obra mais famosa é Fahrenheit 451 (1953), que nas palavras do autor Neil Gaiman (2013), é uma obra sobre o controle do governo em nossas vidas e também uma carta de amor aos livros.


O livro conta a história de Guy Montag, um bombeiro, em uma sociedade distópica, que tem como missão queimar livros ao invés de apagar incêndios, pois eles são considerados uma ameaça ao sistema. Tudo nesta sociedade é planejado para que os indivíduos não pensem, não questionem e não tenham ideias próprias. Segundo Bradbury a “ficção científica é uma ótima maneira de fingir que você está falando do futuro quando, na realidade, está atacando o passado recente e o presente” (BRADBURY, 1953, s/p). Mas, nem tudo são flores...


Após ler a obra, me deparei com um tópico chamado ‘coda’ ao final do livro, que para quem não sabe (eu mesma não sabia), é uma seção conclusiva escrita pelo autor, como uma espécie de desabafo. Enquanto lia, fiquei extremamente confusa, pois eu nunca diria que a mesma pessoa que havia acabado de fazer uma grande crítica aos regimes autoritários teria uma opinião tão controversa sobre as chamadas minorias. O autor as culpa pela “queima” dos livros, pois recebeu várias cartas de leitores pedindo algumas modificações na história, como por exemplo, um maior protagonismo feminino e/ou negro. Ele ainda foi enfático dizendo que “o mundo está louco e ficará mais louco, se permitirmos que as minorias interfiram na estética” (BRADBURY, 1953, p. 212), uma fala completamente infeliz ao meu ver, e ainda alega que se essas pessoas querem ser representadas, elas que escrevam os próprios livros. Bradbury também relata um fato de que uma universidade não quis encenar uma peça de sua autoria, pois não haviam mulheres nela, e a sugestão do autor foi que em uma semana fosse encenada sua peça e na próxima uma que havia somente mulheres no elenco, como se isso resolvesse a questão da igualdade de gênero. Também argumenta que várias peças de Shakespeare deveriam ser proibidas partindo desse princípio. Penso que Bradbury acabou se esquecendo de que não estamos mais no século XVI. Ray foi um artista, tinha acesso à informação, poderia dar voz e espaço àqueles que foram silenciados por séculos e não tinham condições de representarem a si mesmos.


Meu ponto não é pararmos de ler os clássicos, mas sim, que os leiamos nos questionando, refletindo, isto é, fazendo justamente o que o governo em Fahrenheit 451 não queria que a sociedade fizesse. Bradbury está certo quando diz que há várias maneiras de se queimar livros, e eles são queimados até hoje, seja com fogo ou apenas com alternativas que dificultam o acesso à literatura (aumentando a tributação sobre livros, por exemplo). Como afirma o sociólogo, crítico literário e professor universitário, Antônio Candido (1918-2017), em Direito à Literatura (1988), a literatura e os direitos humanos andam lado a lado, o ser humano tem a necessidade de mergulhar em sua imaginação todos os dias, e é justamente a literatura perseguida pelo governo que é tão necessária universalmente.


Na obra não se diz explicitamente o porquê de os livros serem queimados, mas de qualquer forma, a ideia de Bradbury é controversa, justamente porque o governo não quer ver as minorias dentro da intelectualidade. Com um acesso maior à literatura, a população seria capaz de compreender mais sobre história, política e consequentemente eleger melhores candidatos para o poder, entender melhor o que são e pelo que lutam os movimentos sociais e deixar de ser apenas massa de manobra. Concluindo, se os leitores de Bradbury não tivessem acesso à literatura, não poderiam nem ter questionado o autor sobre representatividade, deveria tê-lo deixado com a sensação de dever cumprido, disposto a desenvolver seu modo de contar histórias, e não irritado, a ponto de, como ele mesmo disse, queimar essas cartas.


BRADBURY, R. Fahrenheit 451. 3 ed. São Paulo: Globo, 1953.

CANDIDO, Antônio. O direito à Literatura. In: CANDIDO, Antônio. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Duas Cidades, 2004. p. 169-191