Produção Literária

Fabulação da Mulher Mostro

A mulher que vence seus medos e luta corajosamente

07-12-2020Ana Paula Alsananaalsan12@gmail.com Orientadora: Érica Fernandes Alves

— Diga-me quem foi, diga! Farei do ignóbil o homem mais infeliz do mundo, a competir somente com o próprio Prometeu!

— Não há no mundo alguém que me faria dizer, mãe, patrona, deusa minha.

— Achas que eu lhe faria algum mal, sacerdotisa? Ou ao filho que carregas dentro de seu ventre? Tu serves fielmente a meu comando desde muito nova, e sei que não farias tal abominação, mas certamente alguém o fez. Diga! Diga e irei vingá-la!

O templo de Atenas sacudia com os gritos de sua deusa. Atena, em forma mortal, trajava sua armadura completa, e mesmo com todo o peso, rodeava com passos largos sua serva que estava sentada no chão, enxugando suas lágrimas.

— Eu não faria isso, minha deusa. Eu nunca faria...

— Eu sei que não. Diga-me quem foi que o fez de uma vez, e então poderemos acabar com tudo isso e seguir nossos destinos, sabes que tenho uma guerra para liderar.

— Eu não...

— Tu tens medo de que qualquer homem te faça algum mal novamente? Nunca irá acontecer. A partir de hoje, a maldição de Atena recairá sobre qualquer homem que pise neste templo, ou que olhe para minhas servas. Ele estará morto antes do amanhecer, minha querida. Não há o que temer. Sua pureza, pela vida dele. Me parece muito mais do que simples.

Seja quem for que assaltara a castidade da serva, Atena já presumia o motivo da covardia: Nenhum homem em toda a Grécia compreenderia o porquê, alguém tão ímpar e única em matéria de beleza, assim como Medusa, escolheria servir Atena até o fim dos dias. Esse homem pagaria por sua conduta, todos os homens pagariam se assim fosse necessário.

Medusa levantou os olhos inchados e olhou diretamente para sua patrona, que veio em sua direção.

— Eu não acho que seja possível, minha senhora, tão pouco que seja tão simples. O filho que carrego em meu ventre, contra minha vontade, é filho do deus dos Mares.

____________________

— Esse foi o melhor filme de todos os tempos! — Gritou o garoto pequenino, correndo para a frente da mãe. — Temos que assistir de novo mamãe, por favor, por favor!

— Só se sua irmã quiser, João. Ela não pareceu muito interessada. Solte esse celular enquanto anda, já avisei, irei confiscá-lo.

— Gostaria mais se não tivessem feito o filme em animação, mamãe. — Disse a filha, Joana.

— Há vários filmes sobre a história da Rainha Boadiceia que não são nesse formato, mas infelizmente, nenhum para sua faixa etária. — A garota tinha apenas onze anos, e era poucos anos mais velha que o irmão.

Em regiões que nem mesmo César conheceu, as descendentes de Boadiceia os homens temerão!¹ — Gritou João, citando o excerto do filme, e guardando o celular.

Depois de tomarem sorvete de leite vegetal, mãe e filhos se encaminharam para a livraria, ponto de parada em toda a visita ao shopping. Joana e João correram para a sessão de quadrinhos e a mãe se dirigiu à sessão de ficção. Lá ficou por muito tempo, no nicho de mitologia, e acabou se sentando nos bancos acolchoados que ali ficavam. Pouco depois os filhos vieram até ela.

— Mamãe, a Joana pegou outra HQ da Maria Quitéria²! Ela já tem umas duzentas... ela lê tanto sobre o assunto e não sabe que ela teve que cortar um dos seios para portar melhor a espada à frente do corpo.

— Ela não sabe, pois é uma mentira, querido — Replicou a mãe. — Nesses contos populares, eles sempre mudam algumas informações, resultado de diversas versões diferentes, geralmente passadas de geração em geração por oralidade. Alguns escritores dizem o mesmo das Amazonas brasileiras, as Icamiabas; elas lutavam como guerreiras, mas amamentavam como mães.³ Duvido que os seios atrapalhasse tanto o arco, é provavelmente uma concepção errônea, fruto do imaginário masculino.

João deu de ombros e se sentou para ler seus quadrinhos.

— Mamãe, o que você está lendo? — Perguntou Joana.

Medusa e a fabulação da mulher monstro.

— Já ouvi falarem esse nome na escola. Qual a história dela?

— Bem... — Era uma história um pouco violenta para crianças. A mãe respirou e deixou o livro de lado. — Medusa era uma serva do templo de Atenas, ou seja, uma sacerdotisa da deusa Atena. Um dia, dentro do próprio templo, Medusa foi violentada pelo tio de Atena, Poseidon, o deus dos mares, e engravidou dele. Atena, possessa, se vingou do tio influenciando Etra, outra mulher violentada por Poseidon, e também Medusa, a não darem continuidade a gravidez, pois sabia que o tio tinha grandes planos para os semideuses que nasceriam dos estupros. Assim, com a ajuda de Afrodite, toda a fertilidade foi tirada de seus ventres, com o consenso das mulheres. Poseidon ficou furioso e foi até o irmão, Zeus, pedindo permissão para que se vingasse de sua filha inconsequente, que atrapalhou seus planos para com o seu filho que viria a nascer, Teseu. Zeus não quis ceder a princípio, mas aceitou, com a condição de que nada deveria ser feito diretamente à filha, Atena.

— E ele aceitou?

— Sim, ele aceitou. Ele esperou o tempo certo para agir, pois queria se vingar de Medusa, essa por conseguinte, que não havia feito nada além de ser a vítima do jogo dos deuses. Nesse meio tempo, Medusa adoeceu. Era uma doença da mente: ela não conseguia mais viver em sociedade, e vivia trancada no templo, que agora era visitado apenas por mulheres. Sua fobia social era tão grande, que mal conseguia comunicar-se com as outras sacerdotisas. Um dia, depois de sair do banho na fonte do templo, ela percebeu que algo em si mudara: seu belíssimo cabelo não caía mais sobre seus ombros. Ao olhar-se nas águas, viu que havia se transformado na mais horrível das górgonas; da sua cabeça saíam cobras, algumas mordiam seus ombros, apesar dela nada sentir. A cena a horrorizou. A maldição do deus dos Mares caíra sobre ela. Depois disso, Atena tentou reconciliar-se com o tio, que nunca a perdoou. Após o fracasso de Atena em tentar desfazer a maldição, Medusa quis ir viver em uma gruta distante, sozinha, pois não demorou a descobrir que transformava aqueles que a olhavam nos olhos em pedra. Atena aceitou relutante, e logo após, fez a vontade da sacerdotisa.

— Quando foi que ela se tornou uma grande guerreira, como a Quitéria?

— Pouco depois disso. O irmão de Atena, Perseu, no auge de suas conquistas como herói, se dirigiu à gruta de Medusa, para matá-la, e segundo o próprio, transformar sua cabeça em uma arma contra seus inimigos. Ele não teve chance contra Medusa, que agora, vivia ali junto com outras duas górgonas que Atena levará para lhe fazer companhia, fato do qual Perseu desconhecia. Medusa, com a ajuda das companheiras, cortou a cabeça do semideus, e logo após, como resultado dos olhos arregalados, ele se transformou em pedra. Até hoje, a cabeça de Perseu é símbolo da luta das mulheres e também da maldade masculina. O resto é muito conhecido. Como ela não poderia ficar na gruta escondida, pois se tornaria um grande desafio para os heróis da época, ela foi viver no campo de batalha, lutando ao lado se sua mãe, Atena. Ela, graças ao senso de calor das cobras, sabia se esquivar e quando abrir os olhos. Medusa era conhecida por nunca se vangloriar, independente da vitória. Ela serviu Atena por muitos anos, e não se sabe exatamente a causa de sua morte. Hoje a teoria mais aceita do mito, é a de que ela morrera afogada enquanto se banhava, pois as cobras de sua cabeça não quiseram voltar para superfície, e a arrastaram para o fundo de um rio. Era, claro, novamente um castigo de Poseidon, que ainda mantinha muitas desavenças com a sobrinha, Atena, e quis dar-lhe outra lição. Atena seguiu o que a serva dissera um dia para fazer, caso isso acontecesse: Medusa instruiu para que a deusa colocasse sua cabeça em seu escudo, para que ela pudesse servir-lhe mesmo após a morte. E foi o que Atena fez.

— Nossa! Incrível! Quem é que escreveu a história dela, mamãe? — Perguntou Joana.

— Tudo foi documentado, ao que tudo indica, em um dos poucos poemas épicos de uma das discípulas de Safo, uma poetisa grega.

— Já ouvi falar de Safo! — Disse Joana.

— Sim, com certeza sim. Mas ninguém sabe ao certo quem é o autor do poema, pode até ter sido um homem...

— Impossível!

— Sim, sim. Você tem razão.

— O que teria sido mamãe, caso algum homem tivesse escrito a história dessas mulheres? — Disse Joana olhando para a HQ que segurava e para o livro que sua mãe pusera de lado.

— Eu prefiro nem imaginar, Joana. Eu prefiro nem imaginar.

____________

¹ Tradução livre do poema de William Cowper, Boadicea (1782). Regions Caesar never knew/ Thy posterity shall sway.

² Famosa combatente baiana na Guerra da Independência do Brasil na Bahia. Considerada por muitos a “Joana D’Arc Brasileira”, além de ter sido a primeira mulher a atuar formalmente na infantaria do exército, ela é conhecida por ter usado sua saia por cima de seu traje de combate, após deixar seu disfarce masculino.

³ Adaptação de um apontamento de Rosane Volpatto, historiadora e especialista em folclore, em seu blog já desativado. “é pouco provável que as índias inutilizassem um seio porque amavam como mulheres, defendiam-se como guerreiras e multiplicavam-se como mães”.



Imagem da capa: @macrovector_official/Freepik.