Produção Literária

A volta do relógio

10-09-2021Rafael Zulato GomesLetras Português-FrancêsE-mail:zulatolerafazz@gmail.com

Fonte: Freepik.

Quantas vidas ainda faltam para essa cena cotidiana parar de repetir? Aquele momento incômodo no ponto de ônibus, o tempo não passa enquanto o velho errante ao lado conta a minha pessoa a trajetória sofrida de sua vida. Quem não batuca os pés como se contasse os segundos, ou os estalos dos dedos na perna cruzada, jamais compreenderá o quão demorada é a volta do relógio.


Enquanto o tempo não passa e a ânsia de estar no destino final apenas aumenta, vemos os momentos ordinários da vida alheia. Para quem ainda não entendeu: falo daqueles pequenos pedaços da vida que vemos do outro lado da rua ou nos carros apressados que nela passam.


Com uma alegria pacata vêm, seguida de seu carrinho de mão com uma caixa de isopor, a vendedora ambulante exclamando aos gritos, competindo com os ruídos sonoros dos carros que movimentam a rua, o produto a ser vendido: “Água, suco natural de laranja, refrigerante!”. Assim, ela passa como mais uma personagem diária de nossas vidas, voltando todos os dias e representando o mesmo papel para pessoas que, dia sim, dia não, representam papéis diferentes; alternando entre clientes e apenas transitantes. Mas ela não é a única a tirar seu ganha pão do atraso infernal do ônibus. Ambulantes vendem os mais diversos produtos: frutas, sorvetes, carteiras, perfumes, redes, enfim, qualquer coisa que pode ser carregada em um carrinho de mão. Essas são as engrenagens da cidade que não param enquanto sentamos nossa bunda em um ponto de ônibus e esperamos a hora de voltar para casa.


Vendedores não são os únicos que podemos ver seus retalhos. Enquanto estamos ali, vemos pessoas que simplesmente não têm objetivo algum, quem têm seus compromissos atrasados, ao lazer, ao esporte e para qualquer coisa que queira ir naquela região central da cidade. Vemos crianças voltarem da escola e também a esperar o próximo ônibus que as leve para a direção correta, as vemos enquanto não sentem preocupação alguma com a vida, afinal esse não é o dever delas, ainda. Os jovens que passam fumando maconha, os velhos que fumam tabaco e o bêbado que se esforça para não cair em meio à multidão. Malabaristas chegam quando o sinaleiro fecha, uma criança derruba seu sorvete e desata a chorar e - não poderia faltar - o crente que insiste que sua crença é a única merecedora de se acreditar.


Todos esses retalhos das vidas alheias fazem parte do importante papel do relógio que sempre ousa atrasar meu ônibus. Elas vivem como nós, respiram e se cansam. Algumas sempre nos passam despercebidas, como aquela velha timidez e o passo lento que uma senhora de idade sempre expõe no voltar de feira. Outras chegam extravagantes, com suas roupas coloridas e enfeites radiantes, não há quem ouse não olhar. Eu sou apenas mais um entre elas, sentado acatado no ponto de ônibus, olhando o relógio como se estivesse atrasado para um compromisso. Elas pensam de mim o mesmo que penso nelas: apenas mais uma figurante no incrível espetáculo de nossas vidas.


O velho termina sua história, tão longa e tão sofrida que prefiro aqui não resumir, afinal falo dos retalhos e não dos panos inteiros. Basta que saiba que não passa de mais uma das quais vemos ordinariamente todos os dias de nossos anos, todos os dias de nossas pequenas vidas sem importância. O relógio termina sua volta e o ônibus que espero chega. Após tanto tempo em meio a essa explosão de diferenças, a esse cotidiano conturbado que coloca todo em uma mistura mal feita, a única certeza que tenho é que chegaremos em nossas casas e ficaremos por lá. Assistindo à televisão ou apenas deitados na cama, cuidando de nossos afazeres extracurriculares diários. Apenas nós, enquanto o relógio prepara-se para uma nova volta, para um novo dia e para novas vidas.

Imagem da capa

Freepik. Vetorizado por bedneyimages. Disponível em: https://br.freepik.com/fotos-gratis/crosswalk-com-borrao-de-pessoas_944596.htm#page=2&query=Pedestres&position=5