Maratonar sob o olhar da gramática descritiva

Vamos observar o fenômeno linguístico “maratonar” por uma perspectiva multissistêmica?

Desde criança, aprendemos um amontoado de palavras, as quais formam o que chamamos de vocabulário, mas este não permanece o mesmo, uma vez que todas as línguas, não só o português do Brasil, passam por constantes mudanças, de acordo com as necessidades de comunicação dos seus falantes. Se a língua está em constante uso, certamente você já percebeu que há um conjunto de transformações que ocorrem cotidianamente e dentre elas, temos o neologismo. Os neologismos, segundo Castilho e Elias (2012), são definidos como a composição de uma nova palavra na língua ou a ação de atribuir um novo significado a um vocábulo já existente.

Com o advento da tecnologia, e consequentemente, dos memes da Internet, geralmente associados a forte disseminação de acontecimentos marcantes e engraçados, esse evento tem se tornado cada vez mais frequente. No entanto, muitos acreditam que os neologismos são criações aleatórias, sem fundamento gramatical e por isso, não devem ser considerados parte do nosso idioma. Sendo assim, a partir desse momento, vamos deixar de lado a noção clássica de gramática, preocupada apenas com a variedade culta e ensinada nas escolas, e observar o neologismo por outra perspectiva, que abrange os fenômenos linguísticos dotados de regularidades.

Para demonstrar que os neologismos não são fenômenos irregulares, nos basearemos na gramática descritiva de Castilho e Elias (2012), a qual considera e classifica a heterogeneidade da língua por meio de uma mesma metodologia estrutural, sem a discriminação ou privilégio de uma ou outra variedade. Desse modo, utilizaremos como exemplo o termo “maratonar”, um neologismo formado a partir da palavra “maratona”. A palavra “maratonar” não é encontrada no dicionário, pois lá se incluem apenas vocábulos aceitos na escrita e fala normativas e esta expressão foi criada e utilizada popularmente com a chegada de plataformas de streaming.

Enquanto “maratona” faz referência a um esporte, uma competição de corrida, na qual aproximadamente 42 km são percorridos (MARATONA, 2021), “maratonar” é apontado por alguns glossários, como o Dicionário Informal, como o ato de “assistir a um seriado, ler um livro ou consumir qualquer produto de entretenimento de forma ininterrupta, frenética e incessante, com bastante interesse e empolgação, consumindo inteiramente ou parcialmente em um curto período de tempo.” (MARATONAR, 2021).

Além disso, a regularidade gramatical pode ser observada no processo de estruturação da palavra, neste caso com foco em “maratonar”. Na formação desse verbo foi possível perceber um procedimento bastante comum na língua brasileira, em que o radical “MARATON-”, ou elemento constituinte do significado básico da palavra, se junta ao sufixo “-AR”, responsável pela criação de outros vocábulos com funções distintas do termo original. Mas por que será que o sufixo não poderia ser “-ER”, como no verbo “comer”? Isso ocorre porque a vogal temática “-A”, caracterizada como fundamental para a ligação do radical às desinências nominais e/ou verbais, é pertencente à primeira conjugação verbal e não à segunda. Esse processo de acréscimo do sufixo para a alteração da palavra original é identificado como derivação sufixal. O novo “maratonar”, identificado como verbo no infinitivo, não se encontra disponível na maioria dos sites de conjugação online, mas o Conjugar Verbos-Só Português já possui em sua página as conjugações possíveis deste fenômeno linguístico, viabilizando a observação da regularidade em maratonEI, maratonAVA, maratonAVAM ou maratonANDO.

É preciso observar que não utilizamos palavras isoladas quando nos comunicamos com outras pessoas, pois os termos estabelecem relações uns com os outros dentro de uma sentença, ou ainda, em um contexto maior, a partir do qual o falante pretende produzir sentidos ao receptor. Observemos esses sentidos empregados no uso do neologismo “maratonar” na frase destacada na figura 1:

Em um primeiro momento, se retirarmos todo o restante das palavras, as quais se complementam, e deixarmos somente “maratonar”, ainda saberemos que o assunto alude ao ato de assistir séries ou filmes de modo ininterrupto, embora não seja possível identificar as intenções do locutor para com o leitor. Isto posto, quando analisamos o fenômeno em uma situação comunicativa completa, como na imagem destacada, a primeira interpretação captada é o entendimento mais óbvio e evidente do que se quer dizer, ou seja, recomendar séries que tratam a respeito de crimes e estão disponibilizadas no Globoplay. A segunda trata da compreensão que exige maior atenção, porque se refere ao que não está explícito, ao sugerido indiretamente o enunciado, e neste exemplo, o objetivo implícito do autor é convencer os leitores a assinar tal plataforma e conhecer todo o catálogo. A gramática descritiva nomeia esses dois níveis de interpretação, respectivamente, em sentido proposicional e sentido inferencial.

No parágrafo anterior refletimos sobre o fenômeno linguístico em uma sentença, direcionada indiretamente aos leitores interessados no intuito proposto pelo enunciador. Mas como se deu essa comunicação? Quais estratégias o autor do texto utilizou para a estruturação de seu discurso? E qual efeito teve o uso do fenômeno na manchete (figura 1)? Apesar de parecerem, não são questões complicadas de se responder, afinal, usamos variadas estratégias quando conversamos com diversas pessoas no dia a dia mesmo não percebendo. Por exemplo, é comum dizermos “Teve uma vez...” quando iniciamos uma nova conversa, “E aí” ao darmos continuidade ao assunto tratado, e “Sabe?” Em momentos em que queremos ver se o interlocutor está prestando atenção no diálogo. O discurso reconhecido no texto da figura 1 possui uma abordagem totalmente escrita, mas não deixa de possuir estratégias discursivas. A manchete é caracterizada pela brevidade e clara informatividade, elementos que têm o objetivo de fisgar a atenção do leitor. Para isso, o autor introduziu o tópico de maneira imediata, dando a entender também como se desenrolará o texto completo. O locutor chama e atrai o leitor com o uso do pronome “você”, estreitando a relação entre os dois, ainda que não haja uma interação direta. Aquele responsável por introduzir o assunto, poderia muito bem ter utilizado o termo “assistir” no lugar de “maratonar”, no entanto, não surtiria um efeito tão convidativo. Isso porque o emprego de expressões modernas, presentes principalmente nas redes sociais, em textos cujo propósito é a divulgação, definitivamente engloba um público maior de leitores.

A maioria dos fenômenos linguísticos, como “maratonar”, ainda é recente, ao levar em consideração que ainda não foi dicionarizada e, portanto, não é reconhecida pela gramática normativa, amplamente utilizada em gêneros formais, como os acadêmicos. No entanto, os fenômenos são termos bastante utilizados informalmente e no caso de “maratonar”, foi originado por uma necessidade dos falantes da língua portuguesa brasileira para facilmente definir o ato de assistir certos conteúdos com muita frequência por meio de plataformas de streaming. Além disso, pudemos observar que os neologismos em geral são formados a partir de classificações gramaticais lógicas e pré-existentes, capazes de estabelecer generalizações. Por fim, gêneros como as propagandas, memes, músicas, artigos etc. têm em comum o propósito de cativar a atenção do espectador e, desse modo, tendem a aderir os novos vocábulos que surgem, a fim de se renovarem e se adaptarem às inúmeras mudanças que ocorrem socialmente. Agora que você já foi introduzido às reflexões a respeito do termo “maratonar”, fique atento às variações existentes dessa expressão por aí.

REFERÊNCIAS:

CASTILHO, Ataliba T. de; ELIAS, Vanda Maria. Pequena Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012. 471 p. ISBN 978-85-7244-714-0.

MARATONA. Dicio Dicionário Online de Português, 20 out. 2021. Disponível em https://www.dicio.com.br/maratona/. Acesso em 20 out. 2021.

MARATONAR. Dicionário Informal, 20 out. 2021. Disponível em https://www.dicionarioinformal.com.br/maratonar/. Acesso em 20 out. 2021.

10 séries criminais para você maratonar no Globoplay. Gshow, São Paulo, 25 ago. 2021. Famosos. Disponível em: https://gshow.globo.com/Famosos/noticia/10-series-criminais-para-voce-maratonar-no-globoplay.ghtml. Acesso em: 3 set. 2021