Morfossintaxe

“Gourmet”: Uma análise descritiva reflexiva sobre estrangeirismos e neologismos

05-12-2021Por: João Victor de Oliveira Praciano (joaovpraciano@hotmail.com) e Henrique Malheiro Pasquini (henriquepasquini@icloud.com)Alunos de Letras-Inglês e Literaturas CorrespondentesOrientadora: Érica Danielle Silva

É comum que relacionemos as novas palavras em uso no dia a dia do nosso idioma aos modismos, que são expressões passageiras, que vem e vão com muita rapidez, estando em voga, muitas vezes, em grupos de pessoas muito específicos. Porém, segundo algumas gramáticas e linguistas, para que uma nova expressão seja oficialmente dicionarizada, é necessário que ela esteja presente na vida social da língua por algum tempo, que passe por transformações e se adapte perfeitamente aos usos do idioma ao qual se busca essa inserção. Para exemplificar esses processos, façamos a análise da palavra Gourmet e suas transformações.

Originalmente francesa, por definição do Larousse, Gourmet é um substantivo masculino que significa: personne qui sait distinguer et apprécier la bonne cuisine et les bons vins. Em tradução livre: pessoa que sabe distinguir e apreciar a boa culinária e bons vinhos. Deve ser usado, então, para valorar certos hábitos alimentícios de um grupo específico de pessoas.

No português a palavra manteve sua significação. Segundo o dicionário online Dicio, Gourmet é atribuído ao conhecedor e apreciador de bons vinhos e boas comidas. Mas há um porém: esse não é o único uso possível da palavra no nosso idioma e para contextualizar essas possibilidades precisamos definir duas coisas: o que é estrangeirismo e o que é neologismo.

Como organismo vivo que é, a língua falada passa por mudanças que são fomentadas pelas interações sociais, culturais e linguísticas de seus falantes, e a adesão a expressões idiomáticas imigrantes são inevitáveis, assim então, surgem os estrangeirismos.

Faraco (2001) considera como estrangeirismo “[...] a utilização de elementos de outras línguas na "nossa nacional". No caso brasileiro, seria o uso de palavras e expressões, do inglês, francês, espanhol... no português” (FARACO, 2001, p. 94). Por consequência, é uma palavra de outra língua que já está inserida e devidamente adaptada à língua portuguesa usada no Brasil. Não se questiona o significado ou suas aplicações, já que está explícito em seu uso, é rotineira.

Bechara (2009), por sua vez, define estrangeirismo como o emprego de palavras, expressões e construções externas à língua ao qual está sendo anexada. Portanto, se observa uma gama maior de possibilidades, não se restringindo à palavra por si só.

Já os neologismos são palavras novas em um vocabulário, surgidas a partir de situações inéditas, de novos conceitos, de novas circunstâncias, que precisam de novas denominações. Claudio Cezar Henriques, por exemplo, denomina neologismo como “[...] palavras novas, isto é, não-dicionarizadas ou recém-dicionarizadas [...]” (HENRIQUES, 2003, p. 87).

Tendo esses dois conceitos explicitados, podemos não só entender de que maneira Gourmet entrou no vocabulário do brasileiro, mas também explicar o porquê e de que maneira a palavra adquiriu os seguintes novos sentidos:

[Adjetivo/Culinária] Termo associado a um ideal culinário e gastronômico que se refere à alta gastronomia, às refeições cujos ingredientes são requintados, falando especialmente de comidas caras, preparadas com técnicas específicas e com ingredientes raros.

[Pejorativo] Termo de sentido geral e popular usado para se referir a tudo que, originalmente tem natureza simples, passa por um processo de remodelação e, em razão disso, tem seu preço aumentado: aumentaram o preço da coxinha, agora dizem que é gourmet!

[Expressão] Produto Gourmet. Produto que, idealmente, possui alguma alteração na sua receita, de modo a torná-lo único, geralmente se refere ao melhor produto, luxuoso e mais caro, em relação aos mesmos produtos mais baratos.

Trata-se, assim, de uma expressão frequentemente utilizada por empresas do ramo alimentício, inclusive em propagandas de seus produtos. Para exemplificar, selecionamos uma propaganda da Seara (disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cM52WQUbFQg>), na qual temos duas figuras conhecidas pelo público em geral, Claude Troisgros, um renomado chef de cozinha e, curiosamente, francês, assim como a palavra analisada neste trabalho. A segunda figura é Rodrigo Hilbert, que apresenta um programa culinário no canal televisivo GNT. Ambos estão ali para apresentar ao público uma nova linha de produtos, chamada Seara Gourmet. Perceba, com essa pequena introdução, que é possível notar a intenção dos anunciantes em associar os produtos com a expressão gourmet e aos elementos de requinte e alta gastronomia que ela sugere.

Separamos uma das frases ditas no vídeo para uma análise mais próxima, veja;

“Os maiores especialistas preferem Seara Gourmet!”

A propaganda deixa explícito: quem conhece, quem entende de culinária e cozinha, escolhe os produtos da linha Gourmet, além de deixar implícito ao público que, se os especialistas preferem os produtos da linha Gourmet, esses produtos, portanto, são os de melhor qualidade disponível no mercado, e os consumidores deveriam optar por eles também, afinal, esses produtos deixariam suas receitas no mesmo nível culinário aos desses chefes de cozinha.

A propaganda também faz uso de auxílios visuais para reforçar a imagem de produtos de qualidade. Durante o vídeo, aparecem vários trechos dos produtos sendo preparados, cortados e consumidos. Os alimentos da linha focada em churrasco, por exemplo, estão na brasa, bem dourados, e muito suculentos quando são cortados ao meio. Uma imagem vale mais que mil palavras, certo? Quando uma empresa anuncia um produto, principalmente alimentício, o uso de qualquer linguagem pode modificar a importância daquela mensagem que se deseja transmitir. Logo, é essencial manter a atenção e o interesse do público para que o resultado final, a associação do produto como sinônimo de qualidade, seja alcançado e, assim, se realize a venda.

Viram como foi possível notar a diferença entre os sentidos originais da palavra, tanto no francês quanto português, em relação ao sentido usado na propaganda? Antes usada para distinguir pessoas com gostos sofisticados, de “bom paladar”, depois, para valorar produtos, com qualidade supostamente superior aos demais.

Observamos também que uma língua viva e falada é uma língua que se adapta, evolui. E como parte de um sistema social feito por indivíduos únicos e culturas diversificadas é muito improvável que um idioma saia “ileso” em adotar expressões, palavras e significações presentes em outros idiomas, o que não é algo negativo. Esses empréstimos acontecem para preencher lacunas linguísticas/gramaticais, presentes no idioma ao qual está sendo anexado, para a descrição de fenômenos que ainda não haviam sido nomeados. Esses estrangeirismos podem ser algo muito passageiro, um modismo, como citamos no começo, que se encaixam por um período de tempo específico, a uma situação específica, e logo se perdem. Mas também podem passar para neologismos, serem dicionarizados e então se tornarem parte da gramática de um idioma vivo, que se modifica, sem perder sua característica de fenômeno social comunicativo.


REFERÊNCIAS

Gourmet. Dicio. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/gourmet/>. Acesso em: 1 out. 2021.

ÉDITIONS LAROUSSE. Définitions : gourmet - Dictionnaire de français Larousse. Larousse.fr. Disponível em: <https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/gourmet/37659>. Acesso em: 1 out. 2021.

SEARABRASIL. Seara Gourmet Apresenta: Especialistas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cM52WQUbFQg>. Acesso em: 1 out. 2021.

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

FARACO, C. A. Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola, 2001.

FARACO, C. A. Empréstimos e neologismos: uma breve visita histórica. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, v. 45, 2001. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/4190. Acesso em: 1 out. 2021.

HENRIQUES, Claudio Cezar (org.). Morfologia portuguesa em perspectiva sincrônica: teoria e prática. Rio de Janeiro, 2003, p. 87 (mimeo).