Morfossintaxe

ANÁLISE DA CANÇÃO "CÁLICE"

25-11-2022Por: Pedro Tobias e Gustavo Czachorowski Alunos de Letras-Português/Inglês e Literaturas CorrespondentesOrientador: Hélcius Batista Pereira

INTRODUÇÃO

O presente texto tem por objetivo realizar uma análise linguística da música “Cálice”, composta por Chico Buarque e Gilberto Gil, tomando como base os conceitos apresentados por Perini (2006, 2010) e Castilho (2014) em relação à sentença e suas características. Trata-se de um termo utilizado pelo último autor para substituir as ideias de frase, oração e período, sendo necessário então contextualizar cada uma delas em um primeiro momento para melhor compreensão. Chamamos de frase uma unidade com qualquer sentido e propósito bem definido, algo evidente em exemplos como “Bom dia” e “Fogo!”. Quando organizada pelo verbo, essa unidade possui estrutura interna com sujeito e predicado, ou seja: ela é uma oração (ex. “João está doente”). Enquanto isso, os períodos são frases compostas por uma ou mais orações, como “Fui à loja e comprei duas blusas”.

Desta forma, Perini (2006) introduz os tipos de oração: a imperativa (comando), interrogativa (interrogação), exclamativa (exclamação), declarativa (declaração) e optativa (expressão de desejo hipotético). Contudo, o autor aponta que essas classificações estão relacionadas apenas à estrutura gramatical das orações, deixando de lado a situação em que elas são usadas: apresenta-se então o conceito da força ilocucionária, que são as propriedades de uma oração de acordo com o contexto em que ela está inserida.

Imagine, por exemplo, que está calor em uma sala de aula e o professor pergunta a um aluno: “Você poderia abrir a janela?”. Temos uma oração interrogativa, mas que possui força ilocucionária de pedido, algo que também é expressado pela oração declarativa “Está frio hoje!”, tendo em vista que no contexto da escola, um estudante provavelmente se ofereceria para fechar a janela logo depois. Portanto, as forças ilocucionárias são diversas, podendo ser de declaração, pergunta, ordem, promessa, desejo, reclamação, entre outras.

SENTENÇA E PREDICAÇÃO

Dadas as considerações, como mencionado anteriormente, Castilho (2014) substitui os termos frase, oração e período por sentença, dividindo-a em três pontos de vista: semântico, gramatical e discursivo. Entre essas três perspectivas, temos o processo da predicação, que serve para dar traços semânticos a um alvo selecionado e é dividido entre predicação modalizadora (atribuindo um modo para o alvo), quantificadora (alterando a extensão do alvo) ou qualificadora (caracterizando o alvo). Portanto, em uma sentença como “Maria comprou um sorvete”, temos o predicador quantificador “um”, que escolhe “sorvete” como alvo e transfere a ele o traço/significado de “um único sorvete”, enquanto o verbo “comprou” atua como predicador qualificador ao atribuir o significado de “aquela que compra” a “Maria”. Além disso, é possível encontrar um predicador modalizador em “Infelizmente, o lobo mau matou o caçador”, uma vez que através de “Infelizmente”, o enunciador faz sua avaliação quanto ao alvo “o lobo mau matou o caçador”.

SENTENÇA E PREDICAÇÃO

Dadas as considerações, como mencionado anteriormente, Castilho (2014) substitui os termos frase, oração e período por sentença, dividindo-a em três pontos de vista: semântico, gramatical e discursivo. Entre essas três perspectivas, temos o processo da predicação, que serve para dar traços semânticos a um alvo selecionado e é dividido entre predicação modalizadora (atribuindo um modo para o alvo), quantificadora (alterando a extensão do alvo) ou qualificadora (caracterizando o alvo). Portanto, em uma sentença como “Maria comprou um sorvete”, temos o predicador quantificador “um”, que escolhe “sorvete” como alvo e transfere a ele o traço/significado de “um único sorvete”, enquanto o verbo “comprou” atua como predicador qualificador ao atribuir o significado de “aquela que compra” a “Maria”. Além disso, é possível encontrar um predicador modalizador em “Infelizmente, o lobo mau matou o caçador”, uma vez que através de “Infelizmente”, o enunciador faz sua avaliação quanto ao alvo “o lobo mau matou o caçador”.

SENTENÇA E SUAS PROPRIEDADES SEMÂNTICAS

Quanto às propriedades semânticas da sentença, temos os papéis temáticos, que são os significados atribuídos a um alvo através da já mencionada predicação e correspondem às diversas “representações linguísticas do mundo que nos cerca” (CASTILHO, 2014). Isso os distingue dos traços semânticos inerentes, que são os significados possuídos por um alvo fora da sentença e independente dela. Em “menino”, por exemplo, temos os traços [+humano] e [+animado], enquanto “cachorro” é [-humano] e [+animado]. Portanto, a relação entre traços semânticos inerentes permite que restrições de seleção semântica sejam feitas na sentença, como no verbo “beber”, que se combina com unidades [+líquidas] mas não [-líquidas], logo, é possível dizer que “José bebeu cerveja”, mas não “José bebeu pizza”.

Sendo assim, Perini (2010) apresenta sua própria lista de papéis temáticos, indica que a importância deles está em “explicitar a relação que existe entre a forma e o significado das expressões linguísticas” e comenta que os mesmos se organizam a partir dos verbos:

Agente: aquele que faz a ação.

Paciente: aquele que sofre a ação ou está em determinado espaço.

Apresentando: elemento que tem sua existência afirmada.

Causa: elemento que expressa um motivo (ex. “Ela chora pela morte do seu cão”).

Experienciador: aquele que vivencia uma experiência (ex. amar, ver etc.).

Causador de experiência: elemento que expressa o que gerou a experiência.

Designação: elemento que atribui nome a algo ou alguém.

Designado: elemento que recebe o nome.

Fonte: elemento que expressa o início de um movimento; lugar de origem.

Meta: elemento que expressa o fim de um movimento; lugar final.

Lugar: elemento que expressa um lugar nem de origem nem final.

Tema: elemento que se movimenta, seja voluntariamente ou não.

Instrumento: elemento utilizado na ação (ex. “Quebrei a janela com um tijolo.”).

Localizando: elemento que será localizado de alguma forma (ex. lugar, medida etc.).

Medida: elemento que referencia uma medida (ex. tempo, tamanho, peso etc.).

Opinador: agente de uma ação mental (ex. “Eu acho que essa é a melhor opção.”).

Possuído: elemento que é posse de alguém.

Possuidor: aquele que tem posse do elemento.

PRS: elemento participante de uma relação social (ex. “Ele namorou o André.”).

Qualidade: elemento que atribui uma qualidade.

Qualificando: elemento que recebe a qualidade.

αRef: elementos com relação de igualdade (ex. “A Amazônia é o pulmão do mundo?”).

SENTENÇA E SUAS PROPRIEDADES DISCURSIVAS

O último aspecto a ser analisado é o discursivo, e para abordá-lo é necessário ultrapassar as propriedades anteriormente discorridas, focando no papel que a sentença exerce como parte do texto no lugar do seu sentido como objeto autônomo. Com isso em mente, Herman Paul (1880, 1920, 1970 apud CASTILHO, 2014) aponta um “processo informativo da língua” na sentença: em um primeiro momento, se introduz uma informação velha, conhecida (tema); ela então é seguida por uma informação nova (rema), que está relacionada ao que acabou de ser apresentado anteriormente. Portanto, em um texto onde “Maria” é alguém conhecido, na sentença “Maria chutou o cachorro” Maria é tema, enquanto o fato de ela ter chutado um cachorro é o rema. Nota-se, inclusive, que na gramática tradicional essa relação é conhecida como sujeito e predicado.

ANÁLISE

Composta em 1973, a música de Chico Buarque e Gilberto Gil acabou sendo censurada pela ditadura militar e lançada somente cinco anos depois. É uma crítica à opressão que ocorria nos tempos da ditadura militar no Brasil e, por estar inserida nesse contexto, ela foi desenvolvida de forma indireta e através de ironias.

Nos primeiros versos, temos a seguinte oração: “Pai, afasta de mim esse cálice”, ao olharmos para o verbo “afasta” percebemos que ele está em sua forma imperativa, assim podemos concluir que se trata de uma oração do tipo imperativa, tendo em vista que, de acordo com Perini (2006), “as orações imperativas se caracterizam por apresentarem uma forma especializada do verbo, denominada imperativo”. Entretanto, a força ilocucionária da oração não é imperativa, isto é, não exprime uma ordem. Para uma interpretação adequada da letra, devemos perceber que se trata, na verdade, de um pedido, uma súplica.

O eu lírico pede que o “cálice” seja afastado dele; a palavra “cálice” é utilizada pela sua aproximação fonológica com o verbo calar (cale-se) no modo imperativo. Neste caso, o verbo no imperativo tem, de fato, força ilocucionária imperativa, pois tem como objetivo representar as ordens repressivas da ditadura, que “calava” determinadas expressões artísticas. A primeira estrofe é finalizada com: “Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue” em que observamos alguns fenômenos apontados por Castilho (2010). Para o autor, um termo da oração, chamado de predicador, pode transferir traços a um outro termo, chamado de escopo, complementando ou modificando seu significado; quando uma qualidade é transferida dizemos que houve uma predicação qualitativa. No caso da oração citada, “de vinho tinto” realiza uma predicação qualificadora em “cálice”, nos indica o que o cálice contém, e logo em seguida “sangue” realiza a mesma ação com “vinho tinto”. Na música, esses elementos ajudam a dimensionar a força violenta da repressão na ditadura.

A segunda estrofe é iniciada pela seguinte sentença: “Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta”, por não ter verbos no imperativo, pontos de exclamação ou interrogação, nem expressar um desejo, podemos concluir que se trata, na definição de Perini (2006), de uma sentença de tipo declarativa, definida negativamente a partir dos traços mencionados. Porém a força ilocucionária é de pergunta; o intuito do eu lírico é questionar de que modo ele poderia suportar as condições impostas pela violência da ditadura. No verso “De que me vale ser filho da santa?”, a oração é interrogativa, mas é na realidade um questionamento retórico, sua força ilocucionária é de indignação com a realidade, ele já conhece a resposta (“Melhor seria ser filho da outra / Outra realidade menos morta”), mas não consegue alcançar essa realidade. A estrofe é finalizada por uma sentença declarativa: “Tanta mentira, tanta força bruta”, mas que apresenta uma força ilocucionária de reclamação, o eu lírico reforça nesses versos a ideia que está contida em toda a música, uma denúncia dos abusos da ditadura militar.

Ele continua sua crítica em: “Como é difícil acordar calado / Se na calada da noite eu me dano”. Se olharmos para o contexto da época, percebemos que as orações declarativas carregam uma força ilocucionária de denúncia, já que a noite era geralmente o horário que as forças repressoras da ditadura agiam, por isso a “dificuldade” associada ao dormir e acordar.

Surge então um desejo de mudança: “Quero lançar um grito desumano”. A oração declarativa tem força ilocucionária de um desejo, de sair da condição de oprimido. Percebemos também que “desumano” predica “grito”, atribuindo-lhe uma qualidade de dimensão. Seu grito precisa extrapolar os limites humanos para alcançar seu objetivo, pois ele já está saturado da inércia (“Esse silêncio todo me atordoa”; “Silêncio” é argumento do verbo “atordoa” e exerce papel temático de causador da experiência em “me”, o experienciador).

Na estrofe seguinte, temos: “Atordoado eu permaneço atento / Na arquibancada pra qualquer momento / Ver emergir o monstro da lagoa”. Podemos dizer que o “eu” tratado na música desempenha, de acordo com a teoria de Perini (2010), uma função semântica de experienciador, a qual ele atribui, no que tange as relações semânticas entre verbo e o resto da frase, o nome de ‘papéis temáticos’. O “eu” que está atordoado consegue realizar só duas ações: permanecer e ver; ou seja, está em um estado em que só pode experienciar o que vem até ele. O papel temático nos ajuda a compreender que o eu lírico não consegue se colocar na posição de agente para executar uma resolução para o seu problema, ele está passivo.

A estrofe seguinte é iniciada pela sentença “Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado”. Ambas são do tipo declarativa, mas sua força ilocucionária expressa dúvida ou incerteza, talvez fruto do conflito interno que o eu lírico esteja vivendo, entre ter ou não esperança de um futuro livre de opressões. Já desiludido, o eu lírico ainda traz: “De que adianta ter boa vontade”, outra oração com força ilocucionária de pergunta retórica, pois ele já sabe que não adianta ter a “boa vontade”. A música é finalizada com o eu lírico colocando uma série de orações declarativas, que trazem força ilocucionária de desejo: “Quero inventar o meu próprio pecado”, “Quero morrer do meu próprio veneno”, “Quero perder de vez tua cabeça”, “Quero cheirar fumaça de óleo diesel”. Dada sua falta de esperança com o atual cenário, restam-lhe apenas desejos que de alguma forma tomem o lugar ou distraiam-lhe de seu desejo de liberdade.

ANEXO A

“Cálice”

por Chico Buarque e Gilberto Gil

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga

Tragar a dor, engolir a labuta

Mesmo calada a boca, resta o peito

Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa?

Melhor seria ser filho da outra

Outra realidade menos morta

Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada pra qualquer momento

Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda (cálice)

De muito usada a faca já não corta

Como é difícil, pai (pai), abrir a porta (cálice)

Essa palavra presa na garganta

Esse pileque homérico no mundo

De que adianta ter boa vontade

Mesmo calado o peito, resta a cuca

Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno (cálice)

Nem seja a vida um fato consumado (cálice, cálice)

Quero inventar o meu próprio pecado

(Cálice, cálice, cálice)

Quero morrer do meu próprio veneno

(Pai, cálice, cálice, cálice)

Quero perder de vez tua cabeça (cálice)

Minha cabeça perder teu juízo (cálice)

Quero cheirar fumaça de óleo diesel (cálice)

Me embriagar até que alguém me esqueça (cálice)


REFERÊNCIAS

PERINI, Mário. A Oração Simples. Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Ática, 2006. Cap. 3. pp. 61 – 67.

CASTILHO, Ataliba Teixeira de. Primeira Abordagem da Sentença. Nova Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. Cap.6.

PERINI, Mário A. Papéis Temáticos. A Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola, 2010. Cap. 12.


HOLLANDA, Francisco Buarque; MOREIRA, Gilberto Passos Gil. Cálice. In. HOLLANDA, Francisco Buarque. Chico Buarque. São Paulo: Polygram/Philips, 1978. Web.