Morfossintaxe

 A MELHOR ANÁLISE DE TODOS OS MILÉSIMOS DO ÚLTIMO SEGUNDO  

05-10-2023Por: Amanda Caroline Françoso (ra116963@uem.br) Aluna de Letras-Português/Inglês e Literaturas CorrespondentesOrientador: Hélcius Batista Pereira 

É comum que, ao estudar gramática, seja na escola, faculdade ou para prestar um concurso, imaginemos que a única função dessa área do conhecimento é para passar em provas ou escrever de forma “culta”. Estudar português é só pra conhecer regras gramaticais, ninguém usa isso no dia-a-dia, é uma frase usual na boca de alunos e ex-alunos. Entretanto, essa afirmação não poderia estar mais longe da real função dos estudos gramaticais. Por isso, a proposta dessa análise é mostrar como a gramática, a análise linguística em especial, ajuda a interpretar textos de diferentes gêneros, como a música.

Nesse sentido, selecionamos uma pequena parte da análise do período simples para exemplificar como elementos tais quais  papel temático, predicação e força ilocucionária (que serão explicados na sequência) interferem na construção de sentido da música “A melhor banda de todos os tempos da última semana”, da banda Titãs, faixa inserida no álbum de mesmo nome, lançado em 2001. Para realizar esse estudo, alguns trechos da canção serão analisados sintaticamente, isto é, a construção dessas sentenças, enquanto outros serão apenas comentados para completar o conteúdo semântico, ou melhor, o significado geral da música. 


Quinze minutos de fama 

Mais um pros comerciais

Quinze minutos de fama

Depois descanse em paz

O gênio da última hora

É o idiota do ano seguinte

O último novo rico

É o mais novo pedinte

A melhor banda de todos os tempos da última semana

O melhor disco brasileiro de música americana

O melhor disco dos últimos anos de sucessos do passado

O maior sucesso de todos os tempos entre os dez maiores fracassos

Não importa contradição

O que importa é televisão

Dizem que não há nada que você não se acostume

Cala a boca e aumenta o volume, então

As músicas mais pedidas

Os discos que vendem mais

As novidades antigas

Nas páginas dos jornais

Um idiota em inglês

Se é idiota, é bem menos que nós

Um idiota em inglês

É bem melhor do que eu e vocês

(REFRÃO)

Os bons meninos de hoje

Eram os rebeldes da outra estação

O ilustre desconhecido

É o novo ídolo do próximo verão

A melhor banda de todos os tempos da última semana

O melhor disco brasileiro de música americana

O melhor disco dos últimos anos de sucessos do passado

O maior sucesso de todos os tempos entre os dez maiores fracassos


Logo na primeira estrofe da música podemos perceber a marcação de um dos temas trabalhados: a efemeridade da fama, como comprova-se pelos últimos versos, por exemplo: Quinze minutos de fama/ Depois descanse em paz.  Nesses versos a crítica à indústria musical começa a tomar forma, dando sequência à ideia promovida desde o título da canção, a ideia de que quando se trata de fama são poucos os que sobrevivem mais que os primeiros “15 minutos”, é um tempo limitado, incerto, muitas vezes apenas momentâneo.

Corroborando com essa interpretação, na segunda estrofe está o uso do papel temático - a relação de significado existente entre o verbo e seus sintagmas, ou melhor, a função semântica de um sintagma em determinada sentença, de acordo com Perini (2010) - de alfa-ref (relação de igualdade entre os termos), uma vez que: O gênio da última hora/ É o idiota do ano seguinte. Dessa forma, estar no “topo” em um determinado momento (“o gênio da última hora”) não garante que essa situação será duradoura (“É o idiota do ano seguinte”), pelo contrário, considerando as constantes mudanças de opinião das pessoas, influenciadas pelo contexto capitalista vivenciado, o qual reafirma a brevidade das coisas, é considerado “natural” que essas mudanças, por vezes drásticas, ocorram.

No refrão, a relação de predicação entre os termos é fundamental para compreender a crítica explicitada. Nesse sentido, entendemos por predicação a atribuição de traços semânticos, de significado de um termo para o outro (Castilho, 2014). Para exemplificar, tenhamos em mente o primeiro verso do refrão: A melhor banda de todos os tempos da última semana. Nessa sentença, “banda” é o núcleo, é o escopo, o termo que recebe os significados transferidos pelas outras palavras. Sob essa perspectiva, os predicadores que atuam sobre esse núcleo são: “A”, “melhor” e “de todos os tempos”, que atribuem, respectivamente, os significados de 1) não é qualquer banda, o artigo “a” determina especificidade dessa banda; 2) o adjetivo “melhor” qualifica a banda como tal; mas não somente é a melhor banda como também é a melhor “de todos os tempos”. Até esse primeiro sintagma preposicional (ou seja, iniciado por uma preposição), os significados atribuídos são todos abrangentes, qualificando celebremente a banda. No último sintagma preposicional, por outro lado, o sentido muda. “Da última semana” delimita “de todos os tempos”, visto que esse “todos os tempos”, agora escopo da frase subsequente, refere-se apenas à última semana, ou seja, há uma limitação temporal para o grande sucesso.

Sendo assim, os sintagmas que predicam “banda” servem para expandir essa palavra, atribuindo grandiosidade ao termo, mas o último sintagma impõe uma limitação à frase, o que confirma também a ideia da crítica à indústria musical, já que, novamente, as relações se transformam muito rápido. Além disso, as outras frases do refrão seguem todas essa mesma construção sintática, de abrangência e restrição logo após.

Na sequência, a quarta estrofe traz ideia da influência da mídia no consumo da arte, isto é, a partir da atribuição do papel temático de alfa-ref no segundo verso “O que importa é televisão”, percebe-se a relação de igualdade entre “o que importa” e “televisão”. Antes disso, porém, há o verso “não importa contradição”, que, levando em consideração a estrofe anterior (refrão) contrapondo termos de forma a promover limitação do período de fama de uma banda, ajuda a compreender o porquê “o que importa é televisão”.

Nesse contexto, é um fato que com o contínuo desenvolvimento das tecnologias midiáticas, cada vez mais as pessoas são influenciadas pelo que esses meios apresentam, logo quando a música declara - com uma oração do tipo declarativa, definição de Perini (2006) - que “não há nada que você não se acostume”, é no sentido dessa influência. Fazendo relação com o ditado popular, uma música ouvida mil vezes se torna um sucesso, uma vez que a partir de uma repetição incessante nos canais de comunicação, as pessoas consomem esse conteúdo querendo ou não, e acostumam-se a isso, transformando determinada canção, por exemplo, em um hit, um fenômeno.

Ademais, voltando à classificação de orações propostas por Perini (2006), o último verso dessa estrofe (Cala a boca e aumenta o volume, então) é uma oração de tipo imperativa, uma vez que apresenta verbos na forma imperativa (cala e aumenta). A partir disso conseguimos identificar a força ilocucionária desta sentença, ou seja, a relação semântica promovida pela frase no contexto em que está inserida; o qual, nessa oração, é uma ordem, que pode ser interpretada como sendo da TV para o telespectador: “cale a boca, aumente o volume e escute aquilo que passamos para você até se acostumar com o som e fazer dele um grande sucesso”.

Encaminhando para o fim da análise, as estrofes seguintes também possuem a mesma linha crítica em relação à mídia e ao consumo da sociedade capitalista. Com “as músicas mais pedidas” e “os discos que vendem mais”, a ideia é o sucesso advindo desse consumo, mas logo após, tem-se “as novidades antigas/ nas páginas dos jornais”, que diz respeito à brevidade da duração desse sucesso, uma vez que a predicação de “antigas” em cima de “novidades”, reflete as contradições de um mundo em constante mudança, no qual as canções, por exemplo, apenas permanecem como “novas” nas páginas dos jornais (ou em sites, no contexto atual), cujo período de "validade" também é escasso.

A crítica à supervalorização da língua inglesa também está presente, uma vez que desde sempre a língua estrangeira, e seus falantes, são enaltecidos em detrimento daquilo que é nacional. Na música, na literatura, no cinema, entre outras áreas, aquilo que vem de fora tende a ser aclamado, às vezes apenas por ser estrangeiro, como se o fato de não ser do Brasil atribuísse um valor especial ao objeto consumido. Nesse sentido, a música explora a relação de ser “um idiota em inglês” é ser menos idiota que um brasileiro, novamente com o papel temático de alfa-ref, há equivalência entre o idiota em inglês e ser “bem melhor que eu e vocês”.

Para fechar a ideia da efemeridade, na penúltima estrofe os compositores trazem as contraposições entre o velho e o novo, e desconhecido e ídolo, relação essa que dá continuidade à mudança das gerações: os rebeldes de antes que hoje são “os bons meninos”, e os desconhecidos que se transformarão em ídolos no futuro. Isso porque quando se trata de fama, não há garantias. É possível trazer como exemplo artistas atuais, que estouram com singles no TikTok e depois voltam ao quase anonimato, as bandas que duram seus “15 minutos de fama” e logo mais também são esquecidas em favor de outro grupo que acabou de surgir.

Essa música dos Titãs, apesar de antiga se comparados os anos de lançamento e dessa análise, apresenta uma crítica tão atual quanto na época em que foi lançada. Crítica essa explícita no conteúdo, na semântica e reafirmada pelas escolhas sintáticas, de construção das sentenças, feitas pelos compositores, comprovando, mais uma vez, que quando se trata de estudar gramática, a importância vai muito além do que apenas “decorar regras”.


REFERÊNCIAS

TITÃS. A melhor banda de todos os tempos da última semana. In: A melhor banda de todos os tempos da última semana. São Paulo: Abril Music, 2001. Disponível no Youtube (3min).

PERINI, Mário. A Oração Simples. Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Ática, 2006. Cap. 3. pp. 61 – 67.        

CASTILHO, Ataliba Teixeira de. Primeira Abordagem da Sentença. Nova Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. Cap.6.   

PERINI, Mário A. Papéis Temáticos. A Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola, 2010. Cap. 12.