Desde que comecei a pesquisar sobre a literatura fantástica (meu primeiro relatório de iniciação científica de quatro páginas foi entregue em 2001), duas perguntas sempre me perseguiram: 1. A narrativa fantástica é um gênero à parte, fruto de transformações socioculturais que se consolidam historicamente ou é uma prática inerente à mente humana que acompanha as sociedades desde o princípio dos tempos? 2. Se numa narrativa de ficção tudo pode acontecer, por que é que há pessoas que escrevem histórias nas quais acontecem coisas que, seja por parte dos personagens, seja por parte dos leitores, são percebidas como incompatíveis com as leis naturais chanceladas pelo conhecimento científico?
Como vocês devem ter percebido, levei mais de vinte anos (23, para ser mais exato) para começar a tentar responder a essas questões. Como vocês também já sabem, uma pergunta bem elaborada só leva a novas perguntas ou, no máximo a uma resposta evidentemente provisória, ou seja, cedo ou tarde novas perguntas surgirão em função dessas respostas provisórias e assim por diante.
Na minha pretensão de ajudar vocês a formularem as próximas questões, vou começar explicando que, para entender o fantástico como manifestação literária de ficção, é preciso estar ciente dos conceitos de real e de sobrenatural com os quais estamos lidando.
Desde que comecei a estudar o fantástico, real é aquilo que pode ser comprovado, verificado ou reproduzido sempre nas mesmas condições em qualquer lugar que se o procure fazer, ou seja, é tudo aquilo que acontece, mesmo que você não aceite ou não acredite – ou nem se importe. Já o sobrenatural é todo evento erroneamente percebido como para além das leis naturais ou um evento que apenas não recebeu a devida explicação, mas que ocorre naturalmente diante das mais variadas testemunhas nos mais diversos lugares e épocas.
Essas duas definições podem parecer satisfatórias quando as lemos sem precisar aplicá-las a narrativas de ficção: muitas vezes histórias são contadas de maneira a nos convencerem de que, por mais improvável que seja um evento, há uma chance de ele ser verdadeiro. Não estou falando aqui da "suspensão temporal da descrença", porque isso é uma falácia. Nós, seres humanos, não observamos o real a partir dele mesmo, mas a partir do que acreditamos que ele seja ou possa ser. Quando existem lacunas entre o que acreditamos ser um evento, entidade, criatura, artefato ou substância e nossa percepção deles, nosso cérebro as preenche com o que já pensamos de outra coisa parecida, por contiguidade – já ouviram falar de figuras de linguagem (ou pensamento)?
Fui então buscar uma definição de sobrenatural que não fosse científica, para então propor uma síntese: assim como várias coisas na vida, sabemos o que é o sobrenatural, embora não saibamos precisamente defini-lo, conceituá-lo de maneira clara e objetiva. Aconteceu que não consegui encontrar uma definição não científica, ou seja, pré-iluminista (formulada anteriormente ao século XVIII). Isso significa que muito do que nós consideramos um conhecimento inquestionável desde o início dos tempos precisou de quem o defendesse ao longo dos séculos, para que hoje ele faça parte do senso comum.
Houve uma época (acreditem em mim) em que não havia diferença entre natural e sobrenatural. O mais longe que podemos chegar é ao conceito de mirabilia, ou seja, “maravilha”, aquilo que nos obriga a ficar olhando porque está tão fora das nossas expectativas de como a coisa observada deveria ser, que não conseguimos evitar a admiração. Simplesmente ficamos encantados!
Com o tempo, aquilo que nos encantava pode ser depreendido, assimilado, dominado, controlado e reproduzido a ponto de se tornar ordinário. Trata-se da tecnologia e da ciência: na medida em que o ser humano estende seu poder de ação sobre o mundo, resta muito pouca coisa com o que se maravilhar.
Entretanto, por incrível que pareça, o avanço tecnológico pode até dirimir certas dúvidas ou temores com relação aos mistérios do mundo, mas, assim como as perguntas que levam a novas perguntas, as novas tecnologias mais incitam ao mistério do que os enterram definitivamente – ou vocês nunca viram pessoas indo a locais ermos e abandonados com um medidor de ondas eletromagnéticas para conversar com a energia residual de um corpo já sepultado?
No início do século XIX, E.T.A. Hoffmann escreveu contos sobre aparelhos visuais modernos (para sua época, como microscópios, telescópios e certos tipos de espelho) que permitiam enxergar o sobrenatural oculto sob as coisas banais e Mary Shelley narrou a criação de um novo ser vivente a partir de membros e órgãos de falecidos, ressuscitados a partir da aplicação controlada de uma força da natureza, a eletricidade. Nada disso se concretizou cientificamente até hoje, mas daí podemos apresentar uma definição de sobrenatural que não seja iluminista: sobrenatural é todo evento, criatura, entidade, artefato ou substância que supere física, intelectual ou tecnologicamente a capacidade humana de agir sobre a realidade. Já a tecnologia, é todo recurso que estende a capacidade humana de agir sobre a realidade. Logo, há um conflito permanente entre nossa capacidade de agir sobre a realidade e as condições que nos permitem ficar maravilhados com alguma coisa.
Evidentemente, a definição de sobrenatural acima é um meio-termo entre a definição da ciência moderna e a minha, que antecipo a vocês, segundo a qual, o sobrenatural é uma figura de linguagem que torna concebível aquilo que está indisponível, seja porque não está presente, seja porque simplesmente não existe (do ponto de vista da linguagem, sim, mas isso é assunto para outro artigo).
Minha resposta para a questão sobre o fantástico então é que, sim, trata-se de um gênero narrativo à parte, pois ele se consolida numa determinada época histórica dentro de parâmetros socioculturais, políticos e econômicos específicos. O que está presente em todas as épocas é o sobrenatural, o qual, durante uma época, manifestou-se como maravilha (conto maravilhoso, conto de fadas) depois como mistério insondável para a ciência (gótico, fantástico) – e cada gênero narrativo (mito, lenda, contos de fadas, fábulas, etc.) se apropriou dele à sua própria maneira, ao mesmo tempo aproximando essas narrativas, mas também as diferenciando.
Falemos agora do real.
Do ponto de vista científico, real é o que pode ser comprovado, verificado, reproduzido nas mesmas condições independentemente do local ou época em que o experimento seja realizado. E a pergunta número um, aquela que iniciou esta discussão é justamente essa: por que diabos alguém iria escrever uma história DE FICÇÃO (ou seja, sem obrigações para com o real verificável) em que essas duas coisas se confrontam e são percebidas como incompatíveis, quando, numa narrativa de ficção, tudo, eu disse TUDO, pode acontecer? O que pretendem essas pessoas?
Louis Vax alega, em sua obra La séduction de l'étrange (1965), que o problema da intenção do autor é um falso problema. É o que se espera de um filósofo especializado em lógica matemática, mas que contribui imensamente com os conceitos de temas e motivos da narrativa fantástica. Porém, vamos discordar dele: todo enunciador tem uma intenção de comunicação, nem que seja para ser interpretado como incompreensível. Quando lemos a obra de Jean Fabre, Le mirroir de sorcière (1992), em que o pesquisador propõe uma leitura sociocrítica da narrativa fantástica e apresenta o conceito de "esquizofrenia prometeica", a ideia de intenção comunicacional do autor fica mais evidente.
Fabre trabalha três conceitos fundamentais para sua tese: o primeiro é a divisão do tempo em duas dimensões, a saber, a vertical, o tempo da crença na magia; e a horizontal, da crença na ciência. A crença na magia é a crença na ordem imutável do mundo, controlado por forças que existem desde a origem dos tempos e sobreviverão ao seu fim. Já a crença na ciência é a crença na dúvida como princípio motor e na incerteza como resultado mais provável. O mundo é um local imprevisível e a ciência nem sempre consegue cumprir seu papel de forma completa, o que nos leva ao segundo conceito, o de esquizofrenia prometeica.
A esquizofrenia prometeica é o sentimento experimentado pelo crente na ciência, que sabe das suas limitações e para quem não há volta para o tempo vertical: é como o mito de Prometeu, deus grego que trouxe o fogo para a humanidade (seja como forma de se aquecer, seja como forma de iluminar) e acabou punido pelos outros deuses a ser acorrentado a um rochedo onde seu fígado é comido por um abutre. Como o fígado é um órgão que se regenera, todos os dias o mesmo abutre volta para fazer sua refeição, tornando essa punição eterna, como a de Sísifo.
O que isso tem a ver com a esquizofrenia e com o sentimento experimentado por artistas e intelectuais do século XIX?
Ainda segundo Fabre, a pessoa do tempo vertical pode perfeitamente lidar com os progressos da ciência e da tecnologia sem crise de consciência: usar o celular com internet ou voar num avião movido por turbinas a jato sem se preocupar como eles funcionam, bem como simplesmente dar de ombros para a teoria da evolução e alegar se tratar apenas de mera opinião da parte de Darwin. Já a pessoa do tempo horizontal questiona tanto as crenças metafísicas quanto as descobertas científicas e o valor social das invenções que surgem com o propósito de melhorar a vida da população em geral: depois de aceitar a visão científica do mundo, o sujeito do tempo horizontal não consegue mais voltar para o tempo vertical. E aí está a esquizofrenia prometeica: aquilo que me trouxe avanços e melhorias nas condições econômicas e sociais, também me trouxe inquietação porque não consigo mais abandonar minha nova visão de mundo, ainda que ela me faça sofrer.
O terceiro conceito de Fabre é justamente o título de sua obra, o espelho da feiticeira. Se procurarmos por esse objeto, encontraremos, evidentemente, o espelho da bruxa má da Branca de Neve, que funciona como uma enciclopédia viva ou o objeto do mundo real, um espelho de forma convexa, que quanto mais o objeto refletido estiver próximo de sua superfície, mais ele é refletido deformado e, quanto mais longe, mais nítido, mas mais difícil de se ver como seu próprio reflexo. Dessa forma, podemos entender que as forças socioculturais que movem as narrativas fantásticas dificultam a apreensão do fenômeno sobrenatural na medida em que o observador se aproxima dele, seja porque ele se confunde com fenômenos naturais já conhecidos ou se torna totalmente incompreensível, seja porque a distância nos impede de enxergar nitidamente do que se trata, mantendo a ambiguidade de sua interpretação e o mistério, o que também pode nos deixar maravilhados, mas por motivos menos felizes.
Fabre também trata da relação entre crença e medo e propõe uma organização que combina a presença e ausência de cada um dos itens em relação ao outro, formando uma matriz de quatro possibilidades: crer no sobrenatural e ter medo; crer no sobrenatural e não ter medo; não crer no sobrenatural e ter medo; e não crer no sobrenatural e não ter medo. Dessas quatro possibilidades, duas são mais afeitas à narrativa fantástica, a saber, crer e não ter medo e não crer e ter medo, pois seriam as relações mais contraditórias e ambíguas diante de uma narrativa que propõe a presença de um evento, ser, artefato ou substância que supere a capacidade humana de ação sobre o real e que melhor atendem à necessidade de chamar a atenção do público leitor para a sociedade moderna que está se consolidando no século XIX: um espaço de relações puramente materiais (exploração, produção, consumo e lucro) sem lugar para a crença num além sobrenatural ou num aquém maravilhoso.
Intelectuais e artistas de meados do século XVIII em diante começam, então, a produzir obras em que o sobrenatural dá corpo àquilo que é percebido pelas pessoas no dia a dia, mas que não pode ser comprovado pelo método científico nascente e futuramente dominante: o discurso científico é apropriado pelo capitalismo e justifica crimes ambientais ou violações aos (até então inexistentes) direitos humanos, criando cidades extremamente poluídas e cheias de gente pobre e sofrida, a qual foi expulsa dos campos ou tiveram seus pequenos negócios engolidos por grandes indústrias.
Algumas décadas antes, conforme o Marquês de Sade (sim, esse mesmo que você está pensando, 1740 – 1814), em introdução a Os crimes do amor (1799), em Ideia sobre os romances ou “A arte de escrever ao gosto do público”, a segunda metade do século XVIII tinha produzido tantos horrores na vida de sua população que uma narrativa realista aumentaria o sofrimento do leitor e uma fantasiosa seria uma ofensa. Seria preciso equilibrar ambas as tendências.
Conforme já comentamos anteriormente, real e sobrenatural variam de cultura para cultura e de época para época e muito da leitura que fazemos hoje em dia é anacrônica, baseada nos conceitos que o Iluminismo nos trouxe do que é cada um. E como a intenção do autor de narrativas fantásticas é chamar a atenção do leitor para uma dimensão suprarreal para além da vida material em busca da mera sobrevivência, não podemos apenas introduzir seres da cultura popular (também conhecida como folclore) ou mesmo das crenças religiosas numa realidade cotidiana e concluir com um dito moral segundo o qual a ciência está errada e as crenças no sobrenatural estão corretas e que os descrentes irão queimar no inferno – não naquilo que se convencionou chamar de literatura fantástica.
Se não basta introduzir elementos sobrenaturais no mundo real para compor uma narrativa fantástica, como ela se apresenta ao leitor, então?
O problema reside no conceito de “mundo real”. Assim como houve uma época em que real e sobrenatural não eram entidades distintas (em algumas culturas ainda é assim), narrar eventos que hoje são interpretados como sobrenaturais e reais numa mesma história não trazia nenhum sentimento de estranhamento: foi o progressivo avanço do conhecimento técnico e científico que paulatinamente construiu uma fronteira entre o que pode ser considerado real e o que não pode, conforme já conversamos anteriormente.
Entretanto, em 1919, Sigmund Freud (1853 – 1939) publica Das Unheimliche, artigo intitulado a partir da expressão alemã que já foi traduzida por “o estranho”, “o inquietante” e, mais recentemente por “o infamiliar”, que é mais literal e, por ser um neologismo na língua portuguesa, evitaria interpretações baseadas no senso comum. Porém, vou me referir ao Unheimliche como inquietante, pois é um meio termo entre o senso comum (estranho) e o conhecimento de especialidade (infamiliar) e é o termo usado na tradução que costumo compartilhar com meus alunos em minha disciplina sobre o fantástico.
Em pouquíssimas palavras, o inquietante é um sentimento que se manifesta quando algo que deveria ficar oculto, sufocado pelas forças civilizatórias, mas que acabou sendo percebido na vida real, sutilmente escapado de seu exílio para o cotidiano massacrante das grandes cidades – sim, o fantástico é um gênero narrativo essencialmente urbano, pois é neste espaço que aquilo que é considerado superstição ou folclore dos tempos medievais ou de localidades rurais, não deveria surgir. Para a percepção do observador, o inquietante é um elemento já conhecido, mas que se manifesta de maneira incompatível com as expectativas que se tinha dele, ou de um elemento desconhecido, mas que apresenta características familiares a este mesmo observador, ou seja: é igual ao que eu sempre vi, mas não parece o mesmo; ou nunca vi na vida, mas parece que conheço de algum lugar.
O mais importante do inquietante é que ele se intersecciona com o sobrenatural por ser verossímil – um conceito bastante polêmico nos estudos literários, pois, como já comentamos antes, numa narrativa de ficção, tudo pode acontecer, mas o que é real para os personagens, pode não ser para os leitores e o que é real para um grupo de leitores, pode não ser real para outro grupo de leitores. Assim sendo, como determinar se um texto ou discurso é verossímil (parecido com o verdadeiro) ou não?
O conceito de verossimilhança foi elaborado no período clássico (Aristóteles – 384 AEC – 322 AEC – era seu defensor) como forma de separar as obras sérias (verossímeis) das de autores menores (fantasiosas). Uma história verossímil, do ponto de vista clássico, apresenta os fatos como o público de maior instrução tradicionalmente aprendeu a reconhecê-los.
Luciano de Samósata (125 – 181) era um crítico dos historiadores do seu tempo, pois acusava-os de contar a história apenas do ponto de vista dos vencedores e poderosos para bajulá-los e obter favores deles, como também consideravam os mitos reais ao mesmo tempo em que desdenhavam de uma narrativa fantasiosa que visava o puro entretenimento do público. Para Luciano, os mitos estavam na mesma categoria que as histórias fantasiosas, pois contrariavam os mesmos princípios de verossimilhança defendidos por esses historiadores. Etimologicamente falando, uma história fantasiosa é aquela que torna presente aquilo que está ausente: seja o até então desaparecido Odisseu, seja o fantasma do pai de Hamlet ou os seres híbridos de humanos e vegetais da narrativa Uma história verdadeira, escrita pelo próprio Luciano – isto é, ausentes porque se encontram em outro lugar ou porque simplesmente não existem (na linguagem, sim, mas isso é outra conversa).
Afinal, é possível estabelecer critérios seguros ou minimamente justificáveis para responder à pergunta: o que é verossímil em narrativas de ficção?
Vamos por partes.
Começarei dizendo que antes do progresso tecnológico era a verossimilhança quem perseguia a maravilha, obrigando uma reorganização de seu discurso. Façamos um exercício especulativo.
Quando os primeiros hominídeos passaram a se comunicar por códigos verbais e não verbais, estes eram uma minoria. A maioria não dispunha dos meios cognitivos para compreender uma mensagem e provavelmente admiravam ou invejavam aqueles que se comunicavam. Eles tinham o poder de saber o que os outros faziam quando eles não estavam presentes e conseguiam capturar parte do mundo observável em paredes de cavernas e demais rochas. Eram capazes de transformar substâncias inertes em ferramentas que os equiparavam às feras mais temidas. Eram capazes de produzir luz e calor na ausência do sol. Podiam se transfigurar nessas mesmas feras depois de se alimentar de sua carne e de suas entranhas e usar seus ossos para fazer mais armas e ferramentas. Eles tinham poder sobre os demais. E os demais queriam ter uma vida mais segura e confortável, logo, deviam obedecer a esses reis magos.
Porém, esses reis morriam, deixavam seu legado para trás, seja seus genes (de acordo com a Evolução, os mais avantajados em função das condições ambientais deixam mais descendentes), seja o segredo de como fazer fogo, ferramentas, roupas, construir moradias, caçar de forma coordenada em grupo e, especialmente, comunicar-se, e quanto mais gerações de reis morriam, mais descendentes deixavam e mais essas técnicas se disseminavam e menos próximas de um feito notável, de uma mirabilia, encontravam-se.
Muitas histórias foram contadas antes de haver um registro escrito. Logo, podiam ser modificadas de uma geração para outra, de maneira que recolocassem os personagens em seu lugar de heróis, deuses e demônios em relação ao progresso técnico e científico – entendem agora por que a ciência equipara as pessoas aos deuses? Não é porque os deuses possuem uma fonte de poder que pode ser acessada por meios científicos, mas é porque os primeiros deuses eram pessoas maravilhosas, ou seja capazes de fazer coisas que superavam a capacidade humana nua de ação sobre o mundo, mas cujos atos foram incrementados no decorrer da História para poder manter a coesão social a partir de uma tradição cultural baseada em mitos, lendas, fábulas e demais narrativas. Trata-se da figura de linguagem da hipérbole, como defende André Joles, em Formas simples (1930).
Mas tudo muda quando da invenção da escrita: as histórias ficam cristalizadas e não podem ser mudadas, pois, ao serem grafadas, ganham uma “versão definitiva” ou “oficial” e daí novos heróis e deuses só são possíveis pela concepção entre deuses antigos (porque são imortais) com mortais que despertaram o desejo desses deuses. Então, quando novas pessoas capazes de novas proezas que superam a tecnologia disponível, a elas é atribuída uma linhagem bastarda originada em deuses de tempos antigos e não mais atualizamos a extensão de suas façanhas para concorrer com as novas tecnologias.
Pensemos agora em Gilgamesh.
Acredita-se que ele foi um rei que realmente existiu, mas a ele é atribuído o fato de ser filho de deuses e de ter devastado uma floresta quase inteira de cedros do Líbano para as necessidades do seu povo. Com base no raciocínio que fizemos até agora, podemos pensar o seguinte: Gilgamesh era, de fato, maior e mais forte do que seus contemporâneos e até mesmo mais sagaz, pois era capaz de se livrar de todas as armadilhas que lhe preparavam. Um cedro do Líbano é uma árvore tão alta quanto larga e com a tecnologia do ano 3000 AEC, derrubar uma dessas sozinho em um dia seria um grande feito, mas conforme o tempo passou (e o registro escrito que temos é de mais de 1500 anos depois dos supostos eventos) cada geração precisou aumentar um ponto nesse conto para que o feito do rei de Uruk continuasse notável mesmo 1500 anos depois de ocorrido. Isto é, derrubar um cedro do Líbano em dias, sozinho (dadas as tecnologias lenhadorísticas da época) era uma proeza. Quinze séculos depois, tinha de ser uma floresta inteira com as próprias mãos depois de matar a entidade que a protegia. Ufa!
Esse subterfúgio só era eficiente enquanto ainda não era possível registrar esses feitos por escrito e a hipérbole podia aumentar em escala a cada geração que desconhecesse a versão anterior da história. Quando os feitos dos grandes heróis e reis começaram a ser registrados, não era mais possível alegar que eles eram filhos de deuses, pois sua linhagem (demasiadamente humana) era conhecida. Logo, sua genealogia era organizada de maneira a coincidir com a de grandes reis do passado que teriam sido filhos de deuses. Era o império da verdade: a partir do momento em que um evento era registrado, a verdade correspondia exclusivamente ao que estava escrito e o assunto ficava, a partir daí, indiscutível.
Entretanto, conforme ocorreria no futuro, com a invenção de outros métodos de registro e observação do real, os mesmos recursos que seriam usados para comprovar a realidade de um evento, também o seriam para legitimar falsificações – exemplos muito fáceis de entender são as fotografias das primas Frances Griffiths e Elsie Wright, que aparentemente conversavam com fadas em seu jardim, quando na verdade as fadas eram brinquedos de papel de uma das meninas suspensos por alfinetes de chapéu. Mas o fato de terem sido capturadas por câmeras fotográficas deu ao público da época a certeza da existência de tais seres sobrenaturais – até mesmo Arthur Conan Doyle (1859 – 1930). Em 1983, Elsie admitiu a farsa.
Então, não é possível chegar a uma verdade objetiva, concreta, verificável e comprovável? Acho que a pergunta não é exatamente essa, mas outra: será que estamos parando de acreditar somente naquilo que pode ser comprovado cientificamente (os iluministas achavam que em alguns séculos não haveria mais religião) ou o problema é que nós só acreditamos naquilo que nos convém?
Acreditar no que é cientificamente comprovável exige uma escolha que, depois de feita, não tem mais volta, senão por uma rendição completa e abandono dos estudos científicos, como aconteceu com o geólogo Kurt Weise, o qual, ao se sentir insatisfeito com fenômenos geológicos como a idade da Terra e a deriva dos continentes, abandonou Harvard e assumiu-se criacionista. A narrativa fantástica é fruto de mentes que se depararam com o mesmo problema de Weise: viver num mundo em que você precisa desistir das crenças que compuseram o imaginário de sua coletividade, suas tradições culturais em função de uma sociedade em que só o que pode ser provado cientificamente é correto, é desesperador.
A crença é, então, uma questão de escolha?
Isso nos leva ao eterno debate sobre se nascemos como já deveríamos ser e nunca vamos mudar ou se nascemos totalmente zerados e é a educação que faz de nós o que nos tornamos. Assim como nascemos aptos à linguagem verbal, mas não aprenderemos nenhum idioma se não formos ensinados a entender, falar, ler e escrever, o caso da crença é semelhante: nascemos capazes de acumular conhecimento e fazer uso posterior dele ao reconhecer situações nas quais ele é necessário, é o que Pascal Boyer (2004) chama de inferência.
Também segundo Scott Atran (2003), a inferência se manifesta a partir da interação de três módulos conceituais (biologia, física e psicologia intuitivas) e cinco categorias ontológicas (substância, pessoa, animal, planta e artefato). A biologia intuitiva é aquela que nos permite reconhecer a diferença entre um ser vivente e outro não vivente; a física intuitiva nos permite estimar massa, dimensão, velocidade de deslocamento de um objeto e suas propriedades físicas, etc.; já a psicologia intuitiva nos permite lidar de forma “competitiva ou colaborativa” com outro alguém que também intuímos ter uma mente que lhe permita tomar decisões com base num propósito, ou seja, um agente.
Quando as categorias se misturam, ou seja, quando uma estátua parece tão perfeitamente com uma pessoa que parece viva ou quando um sistema operacional de computador nos responde como se tivesse autonomia para falar o que pensa, o inquietante se manifesta e temos a sensação do conflito entre o igual mas diferente ou o desconhecido mas familiar e as origens da capacidade humana de tomar decisões com base na análise de padrões emergem: quando foi a primeira vez que um ser humano percebeu que estava em perigo e o evitou? Quando foi a primeira vez que um ser humano deliberadamente tomou uma decisão que mudou o rumo de sua vida? Quando foi a primeira vez que um ser humano percebeu que se ele reagisse sempre da mesma maneira na mesma situação, ele obteria o mesmo resultado? Quando foi a primeira vez que um ser humano percebeu que seus descendentes poderiam aprender algo somente por meio de uma demonstração, não precisando expor-se ao perigo ou ao desconforto da prática?
Segundo Steve Mitthen (2003), nosso cérebro, desde o início dos hominídeos, há cerca de 4 milhões de anos, supostamente apresentava diferentes módulos responsáveis cada um por uma atividade mental. Com o tempo, essas partes começaram a se comunicar e intercambiar e um dos principais resultados disso foi a capacidade de estabelecer relações de causa e efeito. Isso significa que alguns de nós, lá nos primórdios da humanidade, sabíamos que era perigoso ficar perto de um predador; outros, não. Estes, não deixaram descendentes; já aqueles, sim. O passo seguinte era a capacidade de detectar um predador mimetizado com o meio ambiente. Aqueles que conseguiam enxergar o predador escondido, escapavam antes de seu ataque e deixavam descendentes; os que não conseguiam, não deixavam.
Podemos ficar aqui falando infinitamente de evolução cognitiva, mas o que nos interessa não é o funcionamento puro e simples da mente humana diante de situações que exigem uma tomada de decisão diante de um cálculo que considere relações de causa e efeito, mas quando usamos uma capacidade para detectar predadores mesmo quando eles não estão lá – e quando eles não estão lá, acabamos por inventá-los, que é o que muitos cientistas chamam de atribuição de agência a eventos de causa desconhecida.
Assim sendo, para nossa mente, como subproduto da capacidade de estabelecer relações de causa e efeito, tudo é obra deliberada de um agente: alguém agiu intencionalmente com o objetivo de realizar um determinado ato. Nada acontece por acaso, ou seja, alguém (um agente natural ou sobrenatural) agiu para que aquele evento ocorresse. Isso está presente até mesmo na linguagem verbal, pois os principais elementos de uma frase, em praticamente qualquer língua humana são: sujeito, verbo e objeto e ou complemento. E como isso fica na prática? Quem fez o que a quem (ou por quem ou com quem), como (onde, quando) e por quê? É ou não é a base de quase toda narrativa conhecida? Ou pelo menos o que esperamos que explique a causa de um evento do qual apenas o efeito somos testemunhas? Nosso desejo de saber por que uma coisa acontece é justamente para evitarmos ter o mesmo fim desagradável ou repetirmos o resultado aprazível. No princípio, eram os predadores. Depois, os deuses. Depois, os reis. Por fim, as forças do Mercado, as quais, no fim, não passam de um homenzinho medíocre atrás de uma cortina controlando um avatar assustador para manipular os protagonistas, como em O mágico de Oz (1900).
Porém, numa sociedade em que o espírito científico é mais proeminente – ao menos na imprensa oficial, onde o homenzinho atrás da cortina nunca é pego em flagrante – como incutir na mente das pessoas que o que elas estão vivenciando é possivelmente um fenômeno sobrenatural e não resultado de uma leitura equivocada de um evento natural ou a descoberta de um novo fenômeno que, assim que tivermos tecnologia suficiente, será devidamente estudado e explicado?
É aí que entra a minha pesquisa (PIERINI, 2020), aquela que associa os vieses de autoridade e de confirmação e os estados alterados de consciência e as coincidências fortuitas. Esta é provavelmente a mais profunda e efetiva intersecção deste trabalho e, neste sentido, seu núcleo central. É aqui que se encontram nossas crenças mais profundas e nosso mais seguro senso de realidade: é bem no encontro desses dois elementos que vislumbramos aquilo que é a última fronteira (ao menos por enquanto) entre o real e o sobrenatural, que são as coincidências fortuitas e os estados alterados de consciência.
Os estados alterados de consciência são momentos em que nossa consciência está menos focada em nosso presente perceptual e mais em nossas memórias, perspectivas futuras e outras elaborações mentais (alucinações, devaneios, sonhos, delírios). Já as coincidências fortuitas são eventos distintos entre si percebidos como concomitantes, seja por falha na avaliação de causa e efeito, seja pelo desejo do observador de considerar que esses elementos, de fato, estejam interligados (viés de confirmação). No primeiro caso, tem-se a impressão de que uma dimensão suprarreal com suas próprias leis e habitantes são reais e, de alguma forma, acessível a nós. Já no segundo, temos a impressão de que os habitantes dessa dimensão podem circular entre nós alheios às leis naturais da nossa, isto é, preservando suas vantagens (superpoderes) sobre nós e interferindo em nossa realidade independentemente de nossa capacidade de ação sobre o mundo. Esses elementos tornam o sobrenatural verossímil, pois todos já vivenciamos um deles em algum momento da vida e eles estão repertoriados tanto em nossa cultura (impingidos em nossas mentes por meio do viés de autoridade) quanto em nossa percepção individual.
Como já discutido anteriormente, nossa mentalidade é resultado da interação da nossa capacidade de fazer inferências e reutilizar informação outrora adquirida com a informação já consolidada em nosso meio social por meio de nossas tradições culturais. Richard Dawkins alega que somos crentes porque fomos selecionados para isso e o comportamento selecionado para permitir que fôssemos crentes é a obediência. Darwinianamente falando, os que eram obedientes deixaram descendentes e os que eram desobedientes não deixaram, ou deixaram bem menos. Mas isso não quer dizer que a desobediência foi extirpada de nossos genes, bem como outros comportamentos alvos da seleção de grupo multinível (WILSON, 2013), mas, por causa disso, esses comportamentos se tornam hegemônicos, percebidos como “normais” e qualquer desvio dele é considerado uma anomalia. Mas também, como já dito, se às pessoas não for dado a que acreditar, elas não acreditarão em nada, mas a capacidade de atribuir agência a um evento de causa desconhecida ainda estará lá à espera de uma boa história que a contente.
E é assim que o fantástico realiza aquilo que apregoava o Marquês de Sade nos século XVIII: narrando as implicações sociocognitivas de um evento, ser ou objeto sobrenatural num mundo em que ele não deveria existir. O resto da história é como afirma Irène Bessière (1974): o drama de alguém que tenta, em vão, tomar posse de si mesmo. E fracassa.
E é aqui que entra a arte de contar histórias fantásticas.
Mas isso fica para uma próxima conversa.