Fonética e Fonologia

Características fonéticas do dialeto gaúcho na fala do Youtuber Gugu Gaiteiro

22-04-2022Por: Júlia Daher Carrara Orientador: Juliano Desiderato Antonio.

Muitos dos fenômenos de variação de uma língua podem ser descritos por meio de regras. Nos dialetos que podem ser identificados em um território como o do Brasil, por exemplo, encontram-se conjuntos próprios de normas, já internalizadas pelos falantes, mas cuja existência e funcionamento são reconhecidos e explicados pela linguística. No âmbito da variação sonora, ou seja, das diferenças de pronúncia, boa parte desses fenômenos podem ser devidamente classificados do ponto de vista fonológico, cuja menção se faz indispensável para a análise destes traços no dialeto gaúcho expresso no vídeo “Roda D’água com Cactus”, por Gugu Gaiteiro [https://www.youtube.com/watch?v=vYG0ddCGwgI].

Uma das primeiras características a serem percebidas na fala do youtuber está no modo como é realizada a pronúncia do fonema /R/ em início de palavra. Neste caso, diferentemente do que se tem na maioria dos dialetos PB, o som produzido é o da vibrante alveolar vozeada [ř]. Por exemplo, no vocábulo “roda”, pronunciado logo no início do vídeo, observa-se que a utilização da fricativa velar desvozeada [x] ou “R forte”, forma majoritariamente utilizada no PB, não é adotada por Gugu Gaiteiro, que realiza a pronúncia com a vibrante alveolar vozeada ou “R vibrante”. Assim, a forma [ˈxɔ.dɐ] dá lugar à [ˈřɔ.dɐ] pela fala do gaúcho. Isso acontece, de igual maneira, com a palavra “receber”, que aparece no final do vídeo; [ře.se.ˈbeɾ] se dá no lugar de [xe.se.ˈbeɾ]. Não obstante, esta mesma variação pode ocorrer na pronúncia do /R/ em posição intervocálica, em palavras como “carroça” ou “surra”.

Brescancini e Monaretto (apud Comiotto e Margotti, 2019), estudiosas da produção dos róticos e vibrantes no PB, afirmam que a variação do /R/ pode ocorrer de muitas formas, caracterizando diferentes variedades do português em contato com línguas de imigração, como o italiano e o alemão nas diferentes regiões de colonização e, nas zonas fronteiriças, de contato com a língua espanhola. Em pesquisa realizada por Comiotto e Margotti (2019), visando estudar a pronúncia dos róticos do PB no sul do Brasil, constatou-se que em posição inicial ou intervocálica, tanto a vibrante [ř] quanto o tepe [ɾ], ambos de articulação muito semelhante, ocorrem principalmente em cidades onde estabeleceu-se contato entre o português e o dialeto dos imigrantes italianos, como São Miguel do Oeste (SC) e Erechim (RS). Entretanto, a região que mais apresentou a utilização do tepe foi Blumenau (SC), onde existiu relação entre o português e o alemão.

Gustavo Bohn Kunst, o Gugu Gaiteiro, é habitante do município de São Paulo das Missões, cuja fundação se deu por um grupo de colonos alemães. Trata-se de uma cidade fronteiriça com o território argentino e, portanto, que também pode ter sofrido influências dialetais da língua espanhola. Por estes motivos, a possibilidade da mescla entre esses elementos de grande relevância geográfica, histórica e cultural terem resultado nesse fenômeno de variação se faz considerável, embora a cidade em questão não tenha sido propriamente estudada.

Ainda no que tange à realização dos róticos, vale ressaltar outra variação na fala dos gaúchos do vídeo, desta vez em posição final de palavra e em trava silábica. Nesse contexto, o youtuber e seu pai utilizam-se do tepe velar vozeado [ɾ] em todos os vocábulos desta configuração. Assim sendo, palavras como “cortar” (minuto 0:31), “partes” (minuto 0:57), “spinner” (minuto 2:53) ou “receber” (minuto 5:10), pronunciadas por eles, apresentaram-se, respectivamente, como: [koɾ.ˈta], [ˈpaɾ.tes], [is.ˈpi.neɾ] e [ře.se.ˈbeɾ]. Segundo Callou, Moraes e Leite (1996), responsáveis por investigar a produção do fonema /R/ nas principais capitais do Brasil, este fenômeno é comum em São Paulo e Porto Alegre. Entretanto, sabe-se que esta maneira de falar não se limita às capitais; praticamente todo o estado do Rio Grande do Sul faz a utilização do tepe em trava silábica ou final de palavra.

Outra característica bastante acentuada nesta variedade é a não elevação das vogais que se encontram na sílaba postônica final. Antônio e Barros (2011, p.54) explicam o alçamento ou elevação da seguinte maneira:

Alçar significa colocar em posição mais alta. É o que ocorre com os sons [e] e [o], quando se encontram em sílaba postônica final[...]. Esses sons, que são vogais médias-altas, são pronunciados, respectivamente, como [ɪ] e [ʊ], que são vogais altas. As palavras “mole” e “foto”, por exemplo, são pronunciadas, respectivamente, [ˈmɔ.lɪ] e [ˈfɔ.tʊ].

Cristófaro Silva (apud Antônio e Barros, 2011) aponta, ainda, que essa regra fonológica ocorre em quase todos os dialetos do PB.

Entretanto, o dialeto de Gugu Gaiteiro realiza a pronúncia de vocábulos como “idade” (0:37), “filmando” (minuto 1:37), “cinco” (minuto 2:49) ou “ele” (minuto 5:08) sem o emprego do alçamento postônico final. Portanto, da seguinte forma: [i.ˈda.de], [fiw.ˈmã.do], [ˈsĩ.ko] e [ˈe.le], respectivamente.

Por fim, de ocorrência mais discreta, porém também presente, observa-se uma particularidade relacionada à realização da lateral alveolar [ɬ]. De acordo com Antônio e Barros (2011), em grande parte dos dialetos do português brasileiro, a consoante “l” em posição final de palavra ou sílaba é pronunciado com o som da vogal “u” (transcrita como [w]). Todavia, em algumas regiões do Brasil, este “l” final assume forma velarizada, ou seja, é pronunciada como [ɬ]. No vídeo em questão, é possível constatar a presença dessa variante somente na fala do pai de Gugu Gaiteiro, no minuto 1:15, quando este pronuncia a palavra “difícil” da seguinte maneira: [dʒi.ˈfi.siɬ]; e não [dʒi.ˈfi.siw].

A partir do que se discutiu até aqui, fica evidente que a composição do “sotaque gaúcho” representado no vídeo é produto de uma série de marcas fonéticas cuja aparição se dá de forma sistemática. Nota-se, ainda, a predominância do fator geográfico na formação do dialeto discutido, uma vez que a ocorrência dessas marcas está diretamente conectada a territórios específicos que estão sob mesma ou parecida influência cultural à do Rio Grande do Sul, seja em maior ou menor grau.


REFERÊNCIAS

ANTÔNIO, J. D.; BARROS, D. E. Fonologia e variação. In: ANTÔNIO, J. D.; BENITES S. A. L. (orgs). Fonética e fonologia. Maringá: Eduem, 2011, p. 53-64.

ANTÔNIO, J. D.; BARROS, D. E. Fonética. In: ANTÔNIO, J. D.; BENITES S. A. L. (orgs). Fonética e fonologia. Maringá: Eduem, 2011, p.15-32.

CALLOU, D.; MORAES, J. A.; LEITE, Y. Variação e diferenciação dialetal: a pronúncia do /R/ no português do Brasil. In: KOCH, I. G. V. Gramática do português falado: desenvolvimentos. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1996. v.6, p. 465-493.

COMIOTTO, A. F.; MARGOTTI, F. W. Uso dos róticos do português em contato com os dialetos italianos. Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 41, n. 2, p. e48857, 11 dez. 2019.

Gugu Gaiteiro - Roda D’Água com Cactus. Disponível em: <https://youtu.be/vYG0ddCGwgI>. Último acesso em: 16 nov. 2021.