Entrevista

Personagens-narradores de vídeo games viram objeto de pesquisa de iniciação

Foto do acervo pessoal da entrevistada

Hoje falamos com a pesquisadoras Natália Corbello Pereira, aluna da graduação em Letras Inglês e Literatura correspondente. Ela foi orientada em um PIC pela professora Liliam Marins, com co-orientação do professor Márcio Roberto do Prado, em pesquisa intitulada "O narrador literário adaptado aos videogames".


Mastigando Letras: Qual o tema de sua pesquisa? O que foi pesquisado?

Natália: Nós nos propusemos a estudar as funções e configurações dos personagens narradores tais quais são encontrados em videogames narrativos, pensando principalmente na natureza participativa e procedimental do meio digital no qual se inserem. Objetivamos estudar até que ponto as estruturas peculiares ao meio digital e à arte dos videogames moldam a composição dos personagens narradores, e em que medida os distanciam de manifestações de personagens narradores em outras artes, como a literatura. Para isso, selecionamos e analisamos detalhadamente quatro videogames que apresentam personagens narradores na base de sua proposta lúdica.

Mastigando Letras: De qual teoria ou de quais autores você se utilizou para realizar sua pesquisa?

Natália: A narratologia clássica e neoclássica foram grandes aliadas nesse sentido. Voltamo-nos para as teorias estruturalistas de Genette e os modelos comunicativos propostos por Chatman e Schmid para poder situar o narrador dentro do fenômeno comunicativo mais amplo que é a arte narrativa. Apesar de pensadas para a arte literária (e, no caso de Chatman, também para a arte do cinema), essas teorias foram extremamente úteis também para conceituar o narrador nos videogames – uma forma de arte que se difere das outras principalmente por seu caráter participativo e procedimental. Mas essa base teórica estaria incompleta sem a contribuição de teóricos específicos do meio digital e da área de game studies, de modo que, para suprir a lacuna conceitual entre videogames e literatura, baseamo-nos também em Aarseth (teórico da área de game studies), Hutcheon (teórica dos estudos da adaptação), Thon e Ryan (ambos teóricos de uma vertente narratológica moderna conhecida como narratologia transmídia).

Mastigando Letras: Você poderia falar um pouco dos métodos e procedimentos que você se utilizou para realizar a sua pesquisa?

Natália: Como ocorre com muitas pesquisas na área de humanas, em especial pesquisas que tomam por objeto de estudo algum fenômeno artístico, dependi muito de uma abordagem qualitativa e bibliográfica – em outras palavras, de um período extenso de leituras teóricas variadas que embasassem a análise dos objetos, e, na fase da análise propriamente dita, de minha condição de pesquisadora como sujeito-interpretativo que pretende compreender a produção dos sentidos em seu contexto de circulação. Acredito ser importante que, nesse tipo de trabalho, o pesquisador tenha consciência de que seu filtro interpretativo e sua subjetividade são partes constituintes, inevitavelmente presentes, no processo de pesquisa que desenvolve. Mas é importante também que essa subjetividade seja sistematizada de alguma forma. No meu caso, usei as leituras teóricas para desenvolver de antemão uma lista de perguntas analíticas/interpretativas que então nortearam meu contato com cada um dos videogames integrantes do corpus e motivaram anotações detalhadas do processo de análise.

Mastigando Letras: Que dificuldades você encontrou para realizar sua pesquisa?

Natália: Uma dificuldade – que, de fato, não é específica de minha pesquisa e nem de minha relação com o ambiente acadêmico – é a infinidade de leituras disponíveis no mundo, e a consequente impossibilidade de totalizá-las. Qualquer leitor ávido e curioso concordará comigo nesse sentido: um livro nos leva a três outros livros, um artigo a três outros artigos e, no fim, parece que só nos resta aceitar a realização de que jamais saberemos tudo que há para saber sobre a área que nos propomos a estudar. Sendo agora um pouco mais específica, outra dificuldade foi a falta de diálogo acadêmico. Essa área que escolhi estudar (na intersecção entre teoria literária e game studies) não tem uma tradição acadêmica muito forte dentro da UEM, e mesmo no Brasil. Esse isolamente intelectual, além de colocar sobre o pesquisador uma pressão muito forte em relação a ter que correr atrás de suas leituras e bases teóricas sozinho, com frequência também vem acompanhado de uma certa aridez e de bastante desânimo.


Mastigando Letras: Você poderia agora nos contar sobre os resultados encontrados por sua pesquisa?

Natália: Sobre os narradores empregados em narrativas no meio digital (mais especificamente, narrativas desenvolvidas através da arte dos videogames), percebemos alguns pontos de destaque: em parte por ser necessário que a presença do narrador não contradiga as ações performadas pelo jogador (em especial se o narrador enuncia os verbos no passado), esses personagens-narradores com frequência assumem a função de comentaristas (e, por vezes, metacomentaristas) sobre as ações sendo performadas pelo jogador. Não é incomum que essa função seja acompanhada de uma quebra da quarta parede e de uma inserção pessoal do “desenvolvedor empírico” do jogo (que se apresenta como tal) dentro da narrativa da obra. Outro ponto de interesse é a relação que esse personagem narrador (e as informações por ele fornecidas) estabelece com a representação audiovisual do jogo: o narrador e sua existência verbal têm que assumir configurações que evitem redundância com as imagens apresentadas. Podem, por exemplo, revelar ao jogador os pensamentos de um personagem sendo apenas fisicamente representado na tela; ou podem se configurar como narradores não-confiáveis, dessa forma convidando o interator a tomar parte em um jogo interpretativo no qual precisa avaliar quais das informações (verbais e não verbais) apresentadas constituem a realidade do mundo ficcional do jogo, e quais são meras representações da subjetividade do personagem narrador. De modo geral, como o meio verbal não é o canal semiótico de maior destaque nos videogames contemporâneos, os personagens narradores, quando são empregados, geralmente não são os principais responsáveis pela criação do mundo ficcional do jogo – da forma que o são, por exemplo, na literatura. Em vez disso, são empregados como um de seus muitos constituintes, geralmente como forma de adicionar uma perspectiva diferente ou contraditória aos fatos sendo apresentados/performados pelo jogador, ou como metacomentaristas das ações do jogador (que, no geral, causam o efeito de destacar e desmistificar as práticas comuns à produção e recepção de videogames, aguçando o senso crítico dos jogadores sobre elas).

Mastigando Letras: Em que sua pesquisa colaborou ou contribuiu?

Natália: Acredito que possa ter contribuído para trazer o estudo de games como uma forma de arte para dentro da nossa universidade; contribuiu também para a discussão das especificidades do fazer artístico dentro da mídia digital, e do processo de constituição e recepção de sentido a partir dessa mídia específica.

Mastigando Letras: Dá muito trabalho realizar pesquisa?

Natália: Com certeza, muito trabalho. Acho que não é exagero dizer que, enquanto a pesquisa estava em andamento, dediquei a ela a maior parte de meu tempo (tanto tempo quanto dediquei, na época, à graduação). Correndo o risco de cair em um romantismo pouco produtivo, acho válido afirmar que, de certa forma, toda pesquisa acadêmica é um ato de amor – movido, como é, por uma curiosidade pessoal e intensa em relação a algum fenômeno presente no mundo e pela necessidade de compreendê-lo. Mas, na sociedade em que vivemos, com frequência somos intimados a pensar “atos de amor” como serviços passíveis de não remuneração e não reconhecimento, o que é um grande absurdo. Como mencionei, a pesquisa que fiz ocupou a maior parte da minha vida naquele período – e é justo pensar como isso se aplica à vida de professores universitários que, dentre outras coisas, dedicam-se também à pesquisa. É uma atividade que precisa ser respeitada na dedicação integral de tempo e esforço que ela exige.

Mastigando Letras: Sua pesquisa foi feita de modo voluntário ou com bolsa?

Natália: De modo voluntário. Até me candidatei a uma bolsa, mas, na época, não fui elegível porque já estava cursando meu último ano da graduação em licenciatura (Letras – Inglês). Aos alunos da graduação que gostariam de realizar uma pesquisa financiada por bolsa, sugiro que planejem com uma certa antecedência, que conversem com os professores e que se interem desses aspectos mais burocráticos dos editais da universidade.

Mastigando Letras: Valeu a pena ter vivenciado esta experiência na realização de uma pesquisa?

Natália: Com certeza valeu a pena. Por causa desse processo, hoje sou uma pesquisadora melhor e uma pessoa melhor – desenvolver o pensamento crítico e analítico, obedecer ao rigor científico e cultivar a desconfiança em relação às nossas próprias crenças são atividades que impactam positivamente todas as facetas de nossa vida, não apenas a acadêmica.

Mastigando Letras: Que conselhos você daria para alguém que deseja algum dia experimentar fazer uma pesquisa?

Natália: Não se isole, não tenha medo de entrar em contato com pessoas das mais diversas áreas para levar seus questionamentos, e leia muito. Além disso, é bom lembrar que a iniciação científica no contexto da graduação não é um momento para propor teorias novas nem para contribuir com ineditismo. Essa é uma responsabilidade que você não precisa carregar. Em vez disso, foque em desenvolver uma base teórica sólida para um assunto de seu interesse, e em exercitar suas habilidades argumentativas, seu raciocínio crítico e sua escrita acadêmica.

Mastigando Letras: Já apresentou sua pesquisa em eventos científicos? Se sim, como foi esta experiência? Se não, quando será sua apresentação?

Natália: Já apresentei esse trabalho no EIAC de 2020. Nesse quesito, o fator do isolamento acadêmico também é um problema que me acompanha desde minha primeira iniciação científica: no geral, por causa da peculiaridade do assunto da pesquisa, acabo apresentando meus trabalhos em sessões com alunos que tratam de temas com pouca ou nenhuma relação com o meu. O ruim disso é que a apresentação não rende nenhum comentário e nenhuma discussão, o que, em teoria, deveria ser a essência motivadora de um evento científico. Nas experiências que tive até o momento com apresentações em eventos, a parte mais positiva foi poder assistir e comentar a apresentação de outras pessoas, e assim ficar sabendo sobre as discussões e temas de pesquisa relevantes a outros campos na área de Letras – o que, por si só, já é muito bom e vale toda a experiência.


Muito obrigado pela entrevista! E parabéns pelo trabalho!!!