Ensino e Discurso

LEITURA: O que é? Quais são suas práticas? E como se produz sentido?

Uma análise sobre a influência da leitura e sua extrema importância

28-01-2021Por: Sofia Buzinelo Salvie-mail: ra118246@gmail.com (Aluna do Curso de Letras - Inglês)Orientador: Pedro Navarro

Todos nós sabemos que, desde nosso primeiro ano no colégio, somos influenciados a ler. Aprendemos como a leitura pode nos ajudar no desenvolvimento do vocabulário, mas o que não percebemos é que, na verdade, essa influência da leitura começa muito antes dos quatro anos de idade. Desde que nascemos, vemos e ouvimos nossos pais interagindo com outras pessoas; assistimos a TV, filmes, séries e desenhos animados; e ouvimos conversas, músicas; nossos pais lendo livros infantis ou contando histórias. Quando somos crianças, não sabemos, mas todas essas são formas de leitura. Obviamente, não são a forma que geralmente imaginamos quando pensamos no conceito de leitura: sentar e ler um livro, mas ainda assim são formas de leitura.

Essa relação de influência desde o nascimento é possível porque, no âmbito das Letras, o conceito de leitura é muito maior do que ler um texto, artigo ou livro: leitura é produção de sentido entre pessoas, por meio de um texto - que pode ser falado, lido, assistido, ouvido ou encenado. Para a área de Letras, tudo o que produz sentido é passível de leitura: desde uma simples conversa, onde perguntam a direção de um estabelecimento, até o Hino Nacional do Brasil, que foi escrito nos moldes do estilo Parnasiano. Para auxiliar no entendimento, vamos analisar o sentido do poema "Contrabando" de Oswald de Andrade:

Contrabando

Os alfandegueiros de Santos

Examinaram minhas malas

Minhas roupas

Mas se esqueceram de ver

Que eu trazia no coração

Uma saudade feliz

De Paris.

- Oswald de Andrade

Fonte: Livro Pau Brasil (1925).

Nesse poema, é fácil compreender que o eu lírico estava fora do país - em Paris, na França -, retornou ao Brasil e, ao chegar à alfândega, teve sua mala revistada pelos alfandegueiros, para eliminar qualquer dúvida que nela houvesse algo ilegal escondido, porém o único contrabando que o eu lírico fazia era trazer a saudade de Paris no coração.
Esse entendimento do poema é uma produção de sentido, você - leitor - produziu um sentido a partir das palavras - texto - de outra pessoa - autor. Assim, completa-se o conceito de leitura: a produção de sentido entre pessoas, que foi mediada por um texto.

Práticas de leitura

Agora que o conceito técnico de leitura foi esclarecido é preciso entender que, se tratando, majoritariamente, de textos escritos, há quatro práticas de leitura existentes. Essas práticas se fazem presentes no livro "O texto na sala de aula", são conceituadas por João Wanderley Geraldi e buscam explicitar quais são os motivos para ler um texto: leitura como busca de informação; leitura para estudo do texto; leitura como pretexto; e leitura por fruição.
Para auxiliar na compreensão das duas primeiras práticas de leitura - leitura como busca de informação e leitura para estudo do texto - vamos usar de exemplo uma redação do vestibular de 2019, da Unioeste. A proposta da redação requisitava a produção de um artigo de opinião sobre o uso do agrotóxico, entre 20 e 30 linhas:

A ganância que nos mata aos poucos

"Não há como negar que o mau uso de agrotóxicos é uma problemática que assola nosso país atualmente. Dado as inúmeras substâncias prejudiciais à saúde que podemos encontrar nos defensivos agrícolas, o alto grau de agressividade já é fato explícito que todos temos conhecimento - ou deveríamos ter. Assim, diante de tais informações sobre o vilão que rodeia o funcionamento do agronegócio, é notório o predomínio de interesses lucrativos apenas, enquanto estes colocam em risco a saúde da população.

Dado isso, diversos documentários - "O veneno está na mesa", por exempo (sic) - retrataram essa realidade e explicitaram as reais consequências que o uso indiscriminado de agrotóxicos traz à nossa vida. Há quem diga que a constante modernização do modo com que se utiliza os defensivos agrícolas pode ser benéfica por aumentar a produtividade e, consequentemente, a disposição de alimentos. Contudo, visto os problemas que o agrotóxico gera à saúde do consumidor, tal afirmativa não pode ser considerada válida. Ademais, com tantas pesquisas divulgadas e cenários retratados, podemos - nós, população - crer que existe tamanha necessidade de modificar cada vez mais o campo com o uso dos pesticidas e esquecer do real interesse por trás de tal incidência? Certamente não.

Além disso, estamos em pleno auge da modernização dos processos produtivos e - de acordo com ZygmuntBauman, sociólogo - no ápice da modernidade líquida. Segundo seus pensamentos, na qual prevalece valores individuais e leva à busca pela lucratividade. Estamos pagando o alto preço pela vida moderna, com uma espécie de Revolução Verde inacabável e que aumenta consideravelmente os danos à saúde da sociedade.

Portanto, visto que o lado da balança em que se encontram as consequências negativas do mau uso de agrotóxicos está explicitamente mais pesado, a lucratividade pode ficar em segundo plano. Nada pode justificar o comprometimento da saude (sic) em favor do ampliamento do ganho comercial. Assim, caso os valores continuem invertidos - ganância acima de humanidade, prejudicando a nós - seguiremos sofrendo com a problematica (sic) da utilização desnecessária de tantos defensivos agrícolas."

Fonte: Vestibular da Unioeste (2018).

Prática de leitura como busca de informações

A primeira das práticas é a leitura como busca de informações, que é norteada pelo objetivo básico de permitir ao leitor extrair uma informação. Essa prática é dividida entre extrair informações com um roteiro previamente elaborado à leitura do texto - que seria a leitura feita para responder às questões -; e extrair informações sem um roteiro previamente elaborado - que seria a leitura feita apenas para verificar as informações do texto. Além disso, há ainda a divisão entre extrair informações superficiais e aprofundadas sobre o texto, sendo as superficiais, informações básicas, que são encontradas dentro do próprio texto e as aprofundadas, informações que dependem de outro texto ou do conhecimento de mundo para serem respondidas.

No caso da redação vista acima, não temos um roteiro previamente elaborado para ser seguido, por isso nossa leitura seria para extrair informações do texto - como a citação do sociólogo Zygmunt Bauman (1999) e a sua análise sobre a modernidade líquida. Além disso, podemos identificar os elementos superficiais que podem ser encontrados no texto - por exemplo, que o uso dos agrotóxicos é embasado na lucratividade - e alguns elementos aprofundados - por exemplo, a citação da Revolução Verde, que exige uma informação que não é dada no texto.

Prática de leitura para estudo do texto

A segunda das práticas apresentadas é a leitura para estudo do texto. Essa é uma forma de leitura mais praticada em outras disciplinas do que na Língua Portuguesa, que tem por objetivo organizar e verificar quais as partes que existem dentro do texto para que ele tenha coerência e possa ser extraído um sentido dele. Essa prática de leitura possui um roteiro para facilitar o desmembramento e a análise dos textos, que pode ser seguido por todos os tipos de texto, não apenas os dissertativos: identificar a tese defendida; identificar os argumentos para defesa dessa tese; identificar os contra-argumentos que existem sobre essa tese; e analisar se há coerência entre a tese e seus argumentos listados pelo autor.

Novamente, usando a redação como exemplo, temos que a tese do autor é que os agrotóxicos são prejudiciais e que há uma inversão de valores - "ganância acima da humanidade"; para comprovar seu ponto de vista, o autor usa de argumentos válidos como pesquisas, documentários e fatos históricos, como o início da Modernidade e a Revolução Verde; como contra-argumento, o autor cita a maior produtividade e a maior distribuição de alimentos, mas derruba essa tese afirmando que a qualidade deveria ser levada em conta e não apenas a quantidade; e por fim, chegamos à conclusão que os argumentos são válidos e defendem completamente a tese levantada pelo autor.

Prática da leitura como pretexto

A terceira das práticas é a leitura do texto como pretexto. Nessa prática, a leitura é vista como um pretexto, ou seja, uma base ou um motivo para a criação de outra atividade diversificada. Nessa prática de leitura, a criatividade é muito utilizada e tem grande importância, dado que um texto qualquer será utilizado para a produção de outro, que é, geralmente, artístico, por exemplo, a ilustração de histórias orais ou a criação de um final para uma história que já foi iniciada e admite várias versões finais. Para exemplificar essa prática temos o poema "A casa", de Vinícius de Moraes:

A casa

Era uma casa

Muito engraçada

Não tinha teto

Não tinha nada

Ninguém podia

Entrar nela não

Porque na casa

Não tinha chão

Ninguém podia

Dormir na rede

Porque a casa

Não tinha parede

Ninguém podia

Fazer pipi

Porque penico

Não tinha ali

Mas era feita

Com muito esmero

Na Rua dos Bobos

Número Zero.

- Vinícius de Moraes

Fonte: Livro A arca de Noé (1970)

Esse poema de Vinícius de Moraes ficou muito conhecido após ser musicado por Toquinho e ser usado como tema do quadro "Lar, doce lar", do programa "Caldeirão do Huck", na Rede Globo. Esse é um claro exemplo da prática de leitura como pretexto: o poema foi produzido na década de 1970 e musicado anos depois, por outra pessoa, ou seja, Toquinho viu no poema de Vinícius de Moraes um pretexto para a criação de uma música.

Prática da leitura por fruição

A quarta, e última, dessas práticas é a leitura por fruição do texto, que pretende enaltecer o prazer e a vontade espontâneos da leitura, para que o prazer da leitura substitua a mera obrigação de estudo escolar ou acadêmica. Assim, o conhecimento seria adquirido pela simples vontade do leitor, sem a necessidade de imposição de um método avaliativo para saber o que foi apreendido do texto pelo leitor. Para que isso ocorra e, consequentemente, o verdadeiro incentivo à leitura exista, é necessário: respeitar os passos do aluno como leitor - ou seja, esperar que o leitor encontre o livro certo para começar sua caminhada como leitor e não forçá-lo a ler algo que não o agrada; respeitar o circuito do livro, que significa o caminho que o livro percorre - se ele é recomendado pelos amigos ou se o motivo de lê-lo é a capa chamativa e o título que desperta a curiosidade; e compreender que não há uma leitura qualitativa quando comparada a outra - ou seja, o aprofundamento da leitura de uma pessoa não pode ser comparado, já que depende da quantidade de livros lidos por essa pessoa e pela sua experiência de leitura.

Processo de produção de sentido

Agora, tendo em vista o conceito de leitura, juntamente com as práticas de leitura apresentados pela área de Letras, é mais fácil entender porque essa afirma que o sentido extraído de qualquer leitura é algo pronto, como o produto de um processo desconhecido - o leitor lê o texto, compreende tudo o que é dito, mas não sabe como fez isso. Diante disso, o estudo desse processo de produção de sentido é de ampla importância para o estudo das Línguas, dado que ele é o responsável por permitir que qualquer texto - falado, lido, assistido, ouvido ou encenado - cumpra sua função de transmitir um sentido ao leitor.

Dentro do estudo do processo de produção de sentido, há algumas definições que devem ser esclarecidas:

Sujeito: é aquele que se constitui na relação com o simbólico;

Ideologia: discurso que constitui o sujeito;

Memória: é o interdiscurso, ou seja, o que é dito anteriormente;

História: é o real, que é afetado pelo simbólico;

Língua: é a condição de possibilidade do discurso;

Discurso: é o que é dito, o efeito de sentido entre locutores;

Sentido restrito: é o contexto imediato de algo, circunstância;

Sentido amplo: é o contexto sócio-histórico e ideológico;

Interdiscurso: memória discursiva;

Intradiscurso: o que realizado no instante da enunciação, a forma como algo é dito novamente; Efeito de memória: é a atualização de uma memória por um determinado acontecimento.

Para determinar o processo de produção de sentido, temos que entender, além dos conceitos acima, a ideia de ligação entre os termos "sujeito", "situação", "memória" e "formações imaginárias". Por isso, como forma de auxílio, vamos usar como exemplo uma tirinha de Wood e Stock:


Fonte: Mussalim (2009,p.111)

Por que essa tirinha possui efeito humorístico? Pela ambiguidade do dêitico "minha", que é causada pelo contexto de produção que a tirinha possui, nesse caso, uma sociedade onde é incomum um amigo dormir com a noiva do outro.
A partir disso, é possível perceber que o sujeito é aquele que faz ou recebe uma ação - Wood e Stock; a situação é o que eles estão fazendo no momento, onde e como estão e como é contexto político que eles vivem - eles estão velhos, escorados em uma janela, lembrando do passado e do que faziam quando eram jovens; a memória e as formações imaginárias são o que nós precisamos para entender essa tirinha - que é anormal pensar que o Stock dormiu com a noiva do Wood quando eram mais jovens.

Esse entendimento e a provocação do riso só são possíveis pelo contexto sócio-histórico e ideológico em que vivemos, ou seja, o contexto geral e atual da sociedade brasileira - uma sociedade capitalista, de extrema direita (pensando no político no poder) e extremamente segregacionista - e pela memória que possuímos - é errado dormir com ou ao lado da noiva de outra pessoa, por uma questão de respeito com ela e seu noivo. Em outra sociedade, por exemplo, a esquimó, onde é extremamente comum o visitante dormir entre o casal quando o vai visitar uma família, essa tirinha não possuiria efeito humorístico, pois lá a ideologia pregada pela sociedade é diferente da ideologia empregada aqui. Assim compreendemos que para que o enunciado tenha o efeito esperado, é preciso levar em consideração as ideologias presentes em cada tipo de sociedade, ou seja, o que influencia cada tipo de leitura feita pelos indivíduos sociais.

Referências bibliográficas:

ASSIS, André William Alves de. Na ordem do discurso: as condições de produção, 15 de jun.-13 de jul. de 2020. Notas de aula.

BARBOSA, Pedro Luis Navarro. Leitura e condições de produção, 27 de ago.-20 de out. de 2020. Notas de aula.

GERALDI, João Wanderley. et al. (orgs.). Prática de Leitura na escola. In: O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Editora Ática, 1999. pdf